quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Ô binho, por que você cortou seu cabelo?...

Porque preto também tem direito a cortar cabelo! Porque cabelo crespo cresce e cai como qualquer outro tipo de cabelo. Porque o cabelo é meu e faço com ele o que eu quiser. Porque um corte é apenas mais um tipo de penteado. Porque minha negritude não está apenas no meu cabelo. Porque sim!
Cortei o cabelo. E meu ouvido nada seletivo começou a coçar no exato momento em que decidi passar a máquina nele. Sabe aquele incomodo que voce sabe que vai sentir por alguma decisão que voce toma, seja ela que instancia for? Pois então. Não foi fácil tomar a decisão, afinal de contas, foram mais de três anos deixando o cabelo crescer a vontade, deixando minha verdadeira identidade de lado para ser chamado na rua como “rasta” (que por sinal nunca fui!!!), ouvindo os mais terríveis absurdos, vendo gente se incomodando ou ficando maravilhada com minhas tranças. Meu cabelo mudou e mudei junto com ele. Como hoje sou outra pessoa, decidi mudar também o cabelo.
Mas como toda epopéia, existem fardos a serem contados aqui neste humilde blog. Quem disse que cortar o cabelo, para mim, que sou um sujeito observador dos incríveis entraves da sociedade é um ato simples, singelo e rápido? Nunca! Descreverei situações bizarras que passei entre o instante de decidir cortar o cabelo e cortar a cabeleira realmente. Fico me perguntando se um homem branco passaria por uma situação das mesmas que passei e a resposta que vem a cabeça é sempre a mesma: NÃO! Se o cabelo é diferente, infelizmente, as situações são opostas. É curioso constatar que as opiniões estapafúrdias não vem somente dos racistas de plantão, mas de todas as tonalidades de pele. Evidenciando o seu conceito pré formulado de superioridade capilar imbecil.
O primeiro movimento que reparei foi dos negros que gostam do cabelo grande e deixam o próprio cabelo grande também. É a galera do Por que voce cortou o cabelo irmão? Cê fez santo foi? Xi meu brother, prefiro o cabelo grandão. Essa galera que acha que agora que pode colocar o cabelo pra cima se acha no direito de relativizar sua negritude e de comparar quem chega a um grau maior/menor de consciência negra através de características fenotípicas. Ou seja, “Sou mais preto que voce por conta disso, daquilo, por que coloco meu cabelo pra crescer e voce não, por que sou mais escuro e voce não, por que vim da favela e pego dois ônibus e voce só pega um”. Está pensando que somente comigo, que sou homem, acontece? Não. Meninas que alisam o cabelo volta e meia acabam ouvindo coisas do tipo “Você deveria tomar vergonha e deixar esse cabelo duro! Tá querendo ser branca é?”.
O movimento dois é dos negros que gostam do cabelo Black, admiram, mas nada de cabelo grande na cabeça deles. Meu Deus, o que foi que aconteceu Filipe? Tá doente? Como se somente uma doença me fizesseeu cortar o cabelo. Ou... Cedeu ao mercado de trabalho foi cara? De um primo meu e suas brincadeiras estapafúrdias na hora do almoço. Engraçado que dias antes ele mesmo dizia a mim que não creditava nessa historia de que o negro precisava cortar o cabelo para trabalhar em alguns ambientes. Também, nascido com a pele clara em uma família negra e confundido como branco por alguns no trabalho, é realmente difícil acreditar nesse tipo de coisa, mas a brincadeira está ali...
Em terceiro lugar vêm os negros que cortam/alisam suas madeixas e também não suportam o cabelo diferente do seu. Ave Maria, ficou dez milhões de vezes melhor! Ou como disse um conhecido que me largou essa: “Detestava aquele cabelo seu, confesso. E eu soltei outra para o lado dele: E daí? Quem tem que gostar do meu cabelo sou eu. o barbeiro com quem cortei o cabelo me dizia “A filosofia rasta já perdeu sua força meu velho. Ideologia agora não é mais moda”. Eu rápido disse: “É... agora ideologia é eu dar mais de R$ 6,00 pra cortar meu cabelo e deixar seu bolso mais gordo.” Ele riu sem graça e se calou. São os que tem mais problemas, pois não conseguem ultrapassar a barreira de assassinar o branco racista que pousa sobre sua cabeça todos os dias e aí violentam o outro. Não sabem também que violentam a si mesmo com suas palavras.
Em quarto chegam os brancos liberais, que geralmente convivem muito com negros, ou estudam a “questão do negro”, ou “tem alguém negro na família” ou “não tem preconceito” ou se vêem indignados com todo tipo de preconceito “besta” que existe por aí, ou “tem um pé na senzala”. Ai Meu Deus, o que voce fez com seu cabelo? Cortei ora essa. Vai deixar crescer pra carnaval, não vai? Ai seu cabelo era lindo. Não vou poder mais te chamar de rasta. Te chamo de que agora? E sua baianidade nagô, onde fica? Ô, caro leitor, me deu uma vontade de dizer onde ficava essa tal baianidade nagô pra ele. Ô se deu vontade...
E por ultimo, mas não menos importante, é claro, os brancos racistas. Ainda bem! Não agüentava mais voce com aquele negocio na cabeça. Ficou mais bonito. Mais leve. Olha pra seu rosto, agora apareceu. Com um sorriso no rosto: Cortou? Tá ótimoooooo! Observe que o movimento deste se aproxima dos negros que não gostam do cabelo crespo grande, mas trata-se de algo diferente. O cabelo grande e crespo para um branco racista denota em sua cabeça poder, que o negro em sua frente não se subjuga. Em seu pensamento é melhor ver/namorar/conviver com uma pessoa negra com cabelo baixo ou alisado, pois de uma certa forma os traços negróides estão “apagados”.
Se voce caro leitor, não faz parte de nenhum desses casos, fique feliz, pois este povo descrito acima precisa de uma suruba terapêutica urgente! Daquelas fortes e impactantes. Notei também neste movimento de aparar a cabeleira, que a única pessoa que se importou com o que eu realmente achava sobre isso era uma grande amiga que também cortou o cabelo e passou por essas mesmas loucuras. Sei que o cabelo para o corpo negro neste Brasil racista é muito mais que um simples cabelo. É identidade! É força! Afirmação. Mas cabelo também pode ser cortado... E no meu caso já passei da fase de cortar o cabelo, pois não gostava dele grande, inventando mil desculpas para não deixar crescer a cabeleira, já que não tinha coragem nem arcabouço para avançar nestas questões. Eu sou outro e como minha negritude está além do meu cabelo, simplesmente corto.
E ele se fortalece, e depois cresce. Lindo, com fios novos em folha e deixa de ser pequeno, passa a ser enorme, volta a incomodar os racistas de plantão. E a história se repete mais uma vez e outra vez e outra vez... Por enquanto, aproveito a sensação boa da água forte caindo na cabeça na hora do banho, ou de sentir ventinho na careca na Orla, ou de me olhar no espelho e enxergar outro eu e de ver, que como qualquer outro ser humano posso me metarfosear, virar de cabeça pra baixo e ver que dentro de mim não existe uma só negritude, existe milhões!

6 comentários:

Braulio da Bahia disse...

Felipe trabalho desde os 16 anos e vejo que no mercado de trabalho infelizmente existem "N" preconceitos, principalmente em relacao a aparencia, nao só se o cara é negro como nós, mais também se tem cabelo grande ou tatuagem ou brinco ou é gordinho como minha pessoa, por isto fiz este comentário e claro com 80% de ironia. Disse realmente que não acredito que competencia tem a ver com aparencia , mais claro nao podemos negar que existem os cliches das profissoes ? Ja viu advogado de calca jeans e camisa do PSOL? Professor de historia de paletó e gravata todo engomadinho?? Médico com camisa de time futebol ??Mecanico com o jaleco impecavel branquinho ?? Como disse isso são clichês nada criado por preconceito meu. Voltando ao assunto acima nada é mais inegável que a competencia, pouco importa se o cara é rasta,gordo, branco , preto, asiático , tenha brincos, tatuagens, piercing se ele resolve um problema na rede de uma grande coorporacao e evita prejuizo de milhões, ou descobre uma brecha na lei que evita que uma empresa pague milhares de dolares . Que o diga Suzan Boyle que parecia uma doida varrida mas quando abriu a boca foi um espetáculo. Acredito e continuo acreditando nisso. Do seu primo negro, gordo e careca e sempre bem humorado e sem problemas de autoestima ... e claro que gosta de sua pessoa. E como diria Freud o pai da Psicologia, "Agente só implica com quem gosta".
Abração as brincadeiras estapafurdias continuarão :D rs !

Filipe Harpo disse...

Eu sabia que ele ia ficar todo se bulindo e responder... Abraços primo. rsrrs

Santana disse...

Muito obrigado pelo texto. Somadas às situações que você descreve, as questões que me fiz quando cortei o cabelo também foram muitas. “Será que há algo subliminar a essa minha decisão de cortar o cabelo?”, “Estou ‘cedendo’, ‘incomodado’?” Creio que esses questionamentos também não passam pelos que não tem o cabelo racializado. Além de ouvir a cantora India Arie (que por sinal conheci pela sua seleção) “I am not my hair, I am not my skin”, ler seu texto foi um presente. Grande abraço!

Naiane Sousa disse...

Amei, Lipe! Me deu até saudades da minha careca! Eu bem passei por isso tudo!
bjo

Filipe Harpo disse...

Todo mundo passa por isso! Quando a gente tem cosnciencia das coisas é que tudo toma forma diferente! Abração a todos e obrigado por acompanhar o blog.

lee disse...

Adorei!! Bem a minha cara,parecia que estava falando de mim. E deixe jeito que as pessoas se comportam,aff!! Adoro a minha careca,sentir a brisa,a água batendo da cabeça e uma das melhores coisas que senti no meu corpo.