domingo, 17 de maio de 2015

Percepções sobre Velhices e Negritudes...



Eu - E ai minha mãe, gostou da médica?
Minha mãe - Gostei sim! Ela é pretinha que nem a gente né? Entende de nossos problemas...

Minha mãe voltou a morar comigo. Anos atrás deu um surto - merecido - de liberdade e voltou para o interior, fugindo da capital e do furdunço da cidade grande. Foi parar em uma cidade com pouco mais de 30.000 habitantes. Vida tranquila, qualidade nos alimentos, na diversão, na tranquilidade, foi ter a vida que sempre sonhou. O filho estava criado, formado, com emprego. Na cabeça dela, a parte dela ela tinha feito. E na minha cabeça, a parte dela ela fez mais que bem feita. Viveu na sua terra natal por um bom tempo com sua cachorrinha, rodeada de plantas, numa boa casa. Parentes por perto. De uns tempos pra cá, a diabete e a hipertensão começaram a pegar mais pesado e resolvi chamar ela para ter minha cia novamente. Ou seja, atualmente ela mora comigo e estou cuidando de minha mãe. O filho virou um pai chato e auto protetor - coisa que minha mãe nunca foi comigo rs. Eu que queria uma filha, ganhei logo uma com mais de 60 anos... Mas o que isso tem a ver com o assunto do meu blog?
Minha mãe é preta ué... E não pude fechar os olhos para o novo mundo da terceira idade. Sendo minha mãe uma mulher negra e agora velha (eu não tenho problema algum com o termo, nem ela, você tem?...), o mundo racista apresenta algumas configurações próprias. Não, ela não sofreu discriminação, e espero que nunca passe por isso depois de idosa, mas arquétipos do racismo sobrevoam feito urubus o novo mundo que a mim se apresenta. Impossível não reparar...
Primeiro, ao acompanhar minha mãe aos médicos, reparo que 90% deles são brancos. Sempre que falo a minha profissão e a de minha mãe, não conseguem esconder a forma pitoresca que nos tratam. Primeiro, a pena social. Nos aliam logo a periferia. Ok, venho da periferia. Mas qual o estigma que carrego pra ser aliado logo a essa parte da cidade? Ganha um doce quem descobrir! Pois os brancos sabem onde moramos não é?... Segundo, eles nos olham, não sabem bairro, nada, nao perguntam, nem olham a ficha direito, só veem nossa cara e pimba: o SUS e remédios mais baratos são logo colocados na mesa, como caridade. Eu dou risada, um sorriso misto de sem jeito e raiva e digo que minha mãe tem plano. ELA TEM?? Sim, sou professora aposentada! AH É? Diz o médico que dentro da sua cabeça faz um esforço enorme para não divulgar a idiotice que fez até então, mas... tarde demais! Imediatamente os remédios começam a subir, o numero, o preço, tudo! E o tratamento é outro! Mesmo que por vezes o estranhamento venha mesmo assim...
Segundo: na sala de espera, como minha mãe é atendida em clinicas dispostas em bairros nobres da cidade, todos os clientes são brancos, principalmente se determinada especialidade médica não for contemplada pelo plano e preciso ir para um particular. Fico pensando sempre, no posto medico do governo, perto de casa e suas intermináveis filas, com gente negra debaixo de chuva, de madrugada pra pegar uma ficha pra ser atendida por um médico que nem sabe se vem pela tarde ainda... Bem diferente do endocrinologista e seu consultório com ar condicionado, tela plana, wifi para clientes, poltronas confortáveis... O mundo é outro meu caro...
Terceiro: o mundo da velhice é um mundo de solidão absurda. Sempre sou chamado a atenção por médicos, recepcionistas e pelos próprios pacientes, que como filho, faço aquilo que muitos, muitos mesmo, não se dão ao trabalho de fazer. Cuidar e acompanhar o pai ou a mãe. Comecei a achar, no alto da minha frieza que "velho é tudo carente", pensei assim dessa forma diabólica! Mas depois, o filme de terror das clinicas começou a me perseguir. Gente que precisa de ajuda pra se locomover sozinha, homens e mulheres extremamente frágeis dependendo da ajuda de estranhos na rua, nos consultórios, preocupados com a própria saúde, pois os parentes não tão nem ai pra eles... Tem gente com 4, 5 filhos que mais parece ter nenhum! E as acompanhantes são muitas vezes as únicas Cias dessas pessoas.
Quarto: Voltando ao inicio da postagem, Um médico preto faz diferença sim. Ao menos um médico preto com vergonha na cara. A tal médica de minha mãe, soube levar ela a um bom estado e coloca-la a vontade. É uma das poucas que minha mãe sorri antes de ir ao consultório. Não é só educação formal... Vai além sim!... É identificação! É uma médica onde a angustia dela vais er levada a sério. O tratamento biológico fica até mais fácil. Não digo, médico negros para negros. O que eu digo é a sensibilidade de um ou uma que saiba de quem ele está tratando. A população negra passa por coisas que outras não passam... Mas nem todos tem sensibilidade para enxergar!...
Minha mãe, aviso logo, nunca militou em qualquer área que seja. Nada de ongs, nada de movimentos, NADA! Não conhece quem é Bell Hooks, nem Angela Davis, Sueli Carneiro, nada, mas é uma das feministas mais bem estruturadas que conheço e uma guerreira contra o racismo.
A boa educação dessa médica negra, contrasta com o total despreparo da médica que atendeu minha mãe no tal posto médico em uma das emergências que passei com ela. O vocabulário, a forma como atendia sem chegar junto a minha mãe, a forma como não se importava com as pessoas... Sim ela era branca! E não é uma característica própria dos brancos tratar mal gente preta, mas a maioria absoluta dos pacientes do subúrbio são negros... e aí, como não pensar em despreparo desse povo? Estou falando dos médicos!...
Quando passo para ir ao trabalho, vejo a  conversa dos estagiários médicos (quase todos brancos) e enfermeiros do posto. Que o povo é sujo, que eles não querem ficar no serviço publico, das noitadas do fim de semana e da nefasta obrigação do trabalho... Por isso o povo da minha rua se mata de trabalhar, mas no tal posto fazem um esforço ENORME para não ir...
E quinto: pessoas velhas transformam o pouco ou muito carinho que você entregar a elas em um tesouro formidável. Muitos deles são abafados em todos os lugares que estão. São lentos sim, se pensam diferente, o corpo é outro ué, mesmo as vezes pertencendo a chamada terceira idade ativa. Nosso mundo não se acostumou com a ideia que um dia vai envelhecer. E sai atropelando tudo e todos diferentes a eles. Por isso, um que construa um sorriso sincero, uma ajuda na rua, ao abrir uma porta pesada, a pegar algo do chão, a tentar parar o carro pra mesmo, em sinal aberto, deixar o senhor ou senhora passar... Eles vão transformar vc em herói do dia! E ajudar esse povo é legal! Sim, alguns deles são rabugentos rsrsrsrs, mas fazer o que né?! Idosos são gente com defeitos e qualidades, não vá pensando que os defeitos somem conforme a idade avança...
Essas percepções me chocam. Nosso mundo é acelerado demais, injusto demais, frio demais, louco demais... E os velhos como estão nesse mundo tão rápido? E os velhos negros? Por que se o racismo não te atingiu "ainda" uma hora você pode acordar... Mesmo que seja depois de velho... Se tem uma chance de começar a cuidar de sua velhice, como ouvia minha mãe dizendo anos atrás, faça desde agora Porque o futuro pra quem é preto e pobre, ou pra quem é simplesmente preto não é nada fácil... Mas juntos ficamos mais fortes! Um confortando o outro. Pois velhice não é atraso. É persistência, é guerrilha, é história... é AMOR!