Entrevistas

Entrevista: Deo Cardoso: Cineasta Negro!

Deo Cardoso é um homem de talento ímpar. Conheci seu trabalho através do You Tube e me emocionei bastante com o primeiro filme dele que vi; “Pode Me Chamar de Nadi” uma história de superação contada de forma singela. Emoção que te faz sorrir, sabe? Resolvi, na cara de pau (quem me conhece sabe que tenho e me orgulho disso!) pedir uma entrevista a ele ao meu humilde blog. E ele não deu uma entrevista... Mas sim uma aula sobre cinema!!! No meio da agenda corrida, por conta da preparação do seu próximo filme, ele arrumou um tempinho e respondeu a todas minhas perguntas. Não cortei nada, impossível cortar. Para que cortar? A gente já é silenciado demais... Então leia abaixo o que este cineasta de 37 anos (nem parece...), nascido em Madison EUA e que vive pertinho da gente em Fortaleza, tem a dizer sobre cinema, negritude, cinema, militância, rap e... cinema, é claro!

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Existe uma nova leva de cineastas no Brasil, que falam de suas mazelas sociais. Uma parcela desses profissionais tem coragem de falar sobre racismo abertamente. Como você escolheu o discurso contra a discriminação para atuar junto a seu trabalho? Como é a “forma Deo Cardoso” de tratar o racismo no cinema?

Não considero bem uma escolha. Não acho que “escolhi” o que melhor me convém pra se falar da questão racial, e sim algo que é a nossa condição e vivência. Algo em primeira pessoa, entende? Mas entendo porque você usou esse verbo. Essa escolha, por assim dizer, se deu por uma questão existencial e política mesmo. Essa coisa de ter nascido nos Estados Unidos e de ter passado a infância entre o contexto de orgulho negro norte-americano e o “racismo cordial” brasileiro gerou em mim uma série de questionamentos desde que eu era pivete.

Eu perguntava pros meus pais (brasileiros) o porquê que, no Brasil, diziam que eu era moreno e nos Estados Unidos diziam que eu era “black”? Daí comecei a questionar porque que as pessoas mais escuras eram as mais humildes e injustiçadas, e que mais sofriam condições sociais desfavoráveis. Desde cedo percebi que muitas coisas eram mais difíceis pra pessoas da minha cor e mais escuras que eu, tanto lá nos Estados Unidos quanto aqui no Brasil. 
E assim, essa formação social e racial mais crítica foi se desenvolvendo na minha mente, e foi se refletindo nas minhas primeiras produções artísticas (contos, poemas e desenhos em quadrinhos). E isso foi ficando, ficando, e virou uma missão mesmo. Por isso não foi bem uma escolha, faz parte da minha identidade e formação pessoal. 

Existe uma frase do grande cineasta baiano Glauber Rocha que diz: “a função do artista é violentar”. Frase um tanto pesada, mas acho que o que ele realmente queria dizer é que a função do artista é trazer à tona questões que nos afligem enquanto seres humanos, no intuito de provocar debates e evoluirmos enquanto seres dotados de consciência. Portanto, para a minha arte, esse discurso da discriminação e do preconceito é necessário pelo potencial emancipatório que o tema traz. A intolerância ao “diferente” (etnia, religião, classe, região, gênero, etc.) é um mal da nossa civilização e isso é histórico. Mas acredito que uma arte que trate abertamente dessas intolerâncias, de uma forma sublime e poética, pode ser tão ou mais “violenta” que um filme de confronto aberto e direto, exatamente pelo poder transformador (e libertador) que uma abordagem simples e poética tem.

Então, não tenho uma forma engessada de trabalhar a questão do racismo em meus filmes. Até aqui, optei por uma abordagem que busque tocar o sentimento humanista das pessoas. São filmes-crônicas. Filmes que abordem nossos dilemas, ora com ternura (como no caso de “Pode Me Chamar de Nadí”), ora com humor e sarcasmo (como no caso de “Cappuccino com Canela”). 
Mas estou com meu primeiro roteiro de longa-metragem pronto há 2 anos, já orçado, louco pra produzi-lo imediatamente, e esse filme é um filme de confronto político mesmo, de um discurso forte contra o que estão fazendo com a juventude negra brasileira. Tem hora que é preciso desabafar pra ver se alguns absurdos que as pessoas naturalizam sejam devidamente debatidos e transformados. Há dois anos tento fazer esse filme, mas é difícil conseguir apoio. Não tenho muita habilidade política de captar recursos, então, tô vendo aí como faço. Só sei que preciso realizar esse filme urgente. 

Deo dirigindo. No set de Pode Me Chamar de Nadi
Vi dois curtas seus no You Tube, veiculo bastante usado por cineastas independentes para divulgação de seu trabalho. A meu ver, possibilita que um número maior de pessoas veja seus filmes, sem a barreira da exibição em salas de cinema pelo país.  Quando faz seus filmes, já se preocupa com essa nova ferramenta? Fazer enquadramentos, cortes, cenas a partir da perspectiva de alguém que vai ver seu trabalho pela net?

Sim, sim. Já realizo meus filmes com isso na mente. Criar tendo o “youtube” ou o “vimeo” na mente altera um pouco a estética da coisa. Imagino alguém assistindo um filme pelo celular, dentro do ônibus, por exemplo. Então, não posso demorar muito num plano. As sequências precisam ser ritmadas. Diálogos precisos. Tudo muito musicado, caprichado, até porque nosso povo tá sempre em movimento, atrás de um emprego, indo pra aula, zuando com os colegas, etc. Tem que ser malandro no sentido positivo da palavra. Ter jogo de cintura, sambar com a situação. Penso em tudo isso sim. Já outros elementos audiovisuais precisam do mesmo cuidado: uma boa composição, uma boa atuação (mesmo eu adorando trabalhar com atores não profissionais, o que, a meu ver, proporciona uma atuação ainda melhor, mais naturalista e documental).

E como trabalho uma temática “guetificada”, não entro muito em festivais. Parece que existe uma cota pra filmes de determinadas temáticas. Parece que a lógica de alguns desses festivais de maior porte é uma porcentagem pra filmes gays, outra pra filmes negros, outra pra filmes feministas, etc. Portanto, gosto da independência de fazer um filme e divulga-lo via youtube. Quando lancei “Cappuccino com Canela” no início de 2014, por exemplo, fiz uma tímida divulgação pelo facebook e, em uma tarde, o filme conseguiu mais de 400 visualizações. Pra mim tá ótimo, pois é como se em uma tarde, uma sala de cinema lotada assistisse o curta.

Em Pode Me Chamar de Nadi, a discriminação racial sofrida pela personagem principal é algo bastante brasileiro. Cotidiana, mas “invisível”, não é direta, pois é feita para silenciar, como a Nadi muitas vezes emudece. A forma como você introduz o tema para a plateia é extremamente sutil... Como foi o processo de construção do roteiro e a introdução do tema na historia?
Até hoje minhas histórias sempre partem de sentimentos que vivencio quando estou inserido em alguma situação real. Lembro-me de ter escrito, com muita raiva, o primeiro tratamento do roteiro de “Pode me Chamar de Nadí” a 5 anos atrás. A Nadí não é somente uma personagem. Ela existe e interpretou a si mesma no filme. À época do filme, Nadí morava na mesma rua que eu e era muito próxima de mim e da minha família. Por ter uma pele bem escura, o racismo que ela sofria era diário e latente.

Construí o roteiro após ter sido testemunha ocular de uma situação em que a Nadí, ao voltar do colégio com seus colegas e irmãos, sofria piadinhas racistas referentes a seu cabelo. Piadinhas que, infelizmente, são tão comuns no ambiente escolar. E Nadí, com sua personalidade forte, me deu um abraço e disse que não aguentava mais aquilo. Ela tinha 9 anos à época. Foi quando eu disse a ela que os meninos iriam se surpreender quando ela virasse uma linda atriz de cinema. Então, escrevi o roteiro movido por dois sentimentos latentes: uma profunda raiva (em imaginar os traumas psicológicos provocados pelo racismo, que uma menina negra precisa enfrentar desde cedo) e por um sentimento de enorme carinho que aprendi a ter pela Nadí, que tem naturalmente o carisma, a simpatia e a personalidade que a Nadí do filme tem. Ali ela está sendo ela. O lado agressivo e o lado doce.

Assim que eu tive uma versão pronta do roteiro, antes mesmo de ser contemplado no edital da secretaria de cultura do estado do Ceará aquele ano, eu mostrei a história pra ela. Mas eu não tinha a dimensão do que estaria por vir. Ela muito menos. Então tudo era muito vago. Não sabíamos se o filme iria ser feito. Não tínhamos essa garantia. Eu já tava pensando em fazer como eu faço hoje: filmes na raça, sem grana com os amigos e amigas. Mas quando o filme foi contemplado pelo edital, pudemos fazer um filme extremamente profissional e acho que conseguimos passar aquele sentimento de ternura e magia de uma pessoa que, pelo menos naquele recorte dramático, superou o racismo graças ao apoio de outra pessoa negra, mostrando que Steve Biko estava certo: Estamos por nossa própria conta. Somos nossa própria força e superação.
Em sua opinião, qual a cara que o cinema brasileiro atual, quer passar sobre o Brasil para o seu público?
O cinema brasileiro atual é muito diversificado, criativo e extremamente bem elaborado. Certamente não estamos em uma fase ingênua. Tanto o cineasta que está ali à margem do mercado, quanto o que está produzindo dentro do mercado nacional sabem que o cinema não é mais engessado em si, e que dialoga com as novas mídias e novos formatos.

Apesar da tradição clássica e ficcional do cinema ainda dominar o mercado, omainstream, como falam (a corrente principal e predominante que flerta com as massas), temos também um cinema que busca refletir a questão da imagem, de transitar entre gêneros e formatos. Um cinema que se pensa inserido no contexto de um país emergente que somos. Então, num recorte de cinema ficcional, eu só posso falar de que cara o cinema brasileiro atual procura passar se eu analisar as intenções estéticas e mercadológicas de cada segmento. Só posso falar das impressões que eu tenho, que podem estar equivocadas, claro. Mas a impressão que tenho é a de que, pelo menos no aspecto mercadológico, o cinema brasileiro atual, em seu obvio objetivo de ganhar terreno dentre as produções hegemônicas americanas, acaba realizando um cinema de extrema qualidade técnica, mas buscando reproduzir o que o cinema hegemônico hollywoodiano já faz, principalmente no campo da comédia. Então, o público de cinema brasileiro acaba condenado a consumir filmes com o padrão de qualidade da maior e mais poderosa emissora de TV do Brasil, que entra com seu poder publicitário massivo, reproduzindo pro cinema um padrão televisivo, sem maiores riscos comerciais.

Acho que, salvo algumas exceções, o cinema mainstream brasileiro está numa fase de autoafirmação, ou seja, busca mostrar a cara de sua qualidade técnica, ostentando roteiros bem amarrados, porém esvaziado de temas que busquem dar um sacode nas pessoas. É claro que falo isso num sentido geral, pois vez por outra esse cinema mais “comercial”, por assim dizer, surge dando um sopapo no senso comum, em filmes comoTropa de Elite (I e II), Cidade de Deus, Uma Onda no Ar, etc.
 No outro polo, temos uma pulsante produção independente país afora. Coletivos de cineastas/colaboradores que pululam em festivais nacionais e internacionais, representando muito bem seus pensamentos críticos/estéticos, sem ter sua estrutura dramática subordinada e engessada a uma fórmula de mercado. Aí destaco a produção do realizador da Ceilândia Adirley Queiroz e seu maravilhoso longa Branco Sai, Preto Fica, que quebra essa linearidade narrativa trazendo um cinema enérgico e que transita entre ficção e documentário, que também dialoga com o hip-hop de seu bairro, Ceilândia, Distrito Federal.

Mas vou te confessar que o cinema que mais me agrada no momento é a recente safra pernambucana. Um cinema que eu coloco no meio termo entre o cinema estritamente comercial, e o cinema estritamente de experimentação de linguagem. O cinema pernambucano me fascina por estar sempre em busca de uma independência narrativa. Essa coisa fervente (ou FREVENTE, relativo ao frevo) que a tradição artístico-cultural pernambucana traz ao longo da história está explicitamente impresso nos filmes daquele estado. Gosto demais dos filmes de Claudio Assis, (em especial Febre do Rato),Lírio Ferreira (Baile Perfumado), Paulo Caldas (Deserto Feliz), Hilton Lacerda (tatuagem), etc.
É a “escola” de cinema nacional contemporânea que eu mais me identifico no momento. Embora exista muita coisa que eu precise conhecer mais. Confesso que nos últimos dois anos, foquei mais em produzir e ensinar do que em acompanhar as novidades e lançamentos do nosso cinema independente. 


Você estudou e começou a fazer seus curtas nos EUA. The Letter, um de seus primeiros trabalhos, já tratava da questão racial. Qual a diferença em tratar de racismo nos EUA e aqui no Brasil?
The Letter foi o primeiro filme que escrevi, produzi e dirigi na vida. Fiz esse filme nos Estados Unidos. Um filme em preto e branco, em película 16mm, realizado no clima da invasão americana ao Iraque. Um curta de 7 minutos, numa época que eu estava sendo apresentado à prática do cinema. Então, assim como na vida, quem tá começando acaba meio que imitando o estilo de alguém que você admira. É assim em todos os aspectos da vida. Você não é maduro o suficiente pra ‘caminhar com as próprias pernas’ e busca referências. A minha, à época, estando nos Estados Unidos, era buscar uma brasilidade na maneira de fazer cinema.


E bebi na fonte do cinema-novo, principalmente de Glauber Rocha. Me senti na obrigação de apresentar o Brasil aos americanos através do cinema novo. Então fiz um filme de câmera na mão, no meio da rua, passando a centímetros do rosto do protagonista, um soldado negro americano que se despedia da esposa (também negra) pra ser aquartelado, rumo ao Iraque.
 Era um filme sem diálogo, que buscava refletir tanto aquele absurdo da guerra, quanto do dilema dos negros em terem que ir à uma guerra de interesses brancos. Um jazz audiovisual, com colagens em áudio da voz de George Bush gritando repetidamente “nós vamos vencer o terror, a America vai prevalecer”, como um remix de Rap, enquanto a câmera avançava no rosto do protagonista enquanto este caminhava na rua.

O professor demorou muito a entender minha proposta. Era tudo muito novo pra ele e ele sabia muito pouco de cinema novo. O dialogo com os Afro-americanos foi imediato. O filme gerou muito debate entre negros e brancos. Muitos deles acalorados, e assim fiquei conhecido ali no mestrado como um cara que gostava de tocar o dedo na ferida. Fui convidado a fazer parte do Hip-Hop Congress, uma organização afro-americana, de negros para negros, que realizava projetos socioculturais em comunidades negras através do hip-hop e da cultura urbana. Ali aprendi muito e foi a época que eu mais militei na causa negra mesmo. Tínhamos palestras com pessoas que fizeram parte dos Panteras Negras, e de outros movimentos de militância negra, enfim. Comecei a fazer dessa causa a minha missão, sempre procurando também ampliar o debate para a opressão não só contra negros, mas contra outros povos historicamente oprimidos também, legado deixado pela política dos Panteras Negras.

Voltando ao Brasil, busquei militar no hip-hop também. Minhas experiências no movimento negro brasileiro não foi tão militante porque aqui eu precisava correr atrás de estudos e meios de sobrevivência. Percebi também que eu não levo jeito pra militância intensa e politizada nas ruas, e procurei compensar essa minha falta de habilidade fazendo uma militância mais artística, através do meu cinema.

Então, quando faço um filme militante nos Estados Unidos, a reação é um pouco de surpresa e encantamento, por eu ser um Afro-Brasileiro-Americano. Ao ver uma obra, eles procuram compreender a legitimidade daquilo, de quem fez a obra. Se o realizador fez por estar inserido no contexto, ou se o realizador é um outsider, como eles dizem, ou seja, se caiu de paraquedas e tá tentando se aproveitar de um tema que não é de seu domínio. Ao verem meus filmes, a discussão do tema nas mostras era de igual pra igual. Analisado num contexto geral. E sempre resvalava pra questão de como era o contexto racial brasileiro.

Aqui no Brasil, no circulo de festivais, das poucas vezes que participei, percebi muito tapinha nas costas de um público geral, e pouco debate. Já quando nosso povo está na plateia, percebo mais o interesse pelo debate e é justamente isso que me alegra. O debate é parte essencial da evolução intelectual e percebo que nós, brasileiros, temos muita dificuldade em debater sem levar pro lado pessoal. Atribuo isso à ditadura militar, e às opressões de nossa história, que nos tirou a prática do debate e da divergência de ideias.
O que você acha do cinema no Brasil hoje feito como se fosse televisão? Onde o filme de hoje é o novo Especial de Fim de Ano, ou da série de sucesso transformada em filme com “simples” toque de edição?
Como eu disse anteriormente, esse cinema contaminado pela estética televisiva é aquele cinema que prefere não se arriscar pra não perder público. Há quem discorde profundamente dessa teoria. Daniel Filho, um dos poderosos autores da Globo, afirmou uma vez que não existe uma estética televisiva e outra cinematográfica. Tudo se contamina. Concordo em partes com ele, por que de fato, se você for ver um filme como “De Pernas pro Ar”, aquilo parece uma extensão do que é feito na TV, uma produção tecnicamente conservadora: uma luz padronizada, uma abordagem cênica que começa do Plano Geral ao Closeup, enfim, uma produção que não se arrisca e que proporciona essa impressão de que aquilo que é cinema de verdade. Deixa o público mal-acostumado, viciado a esse tipo de produção. E dá-lhe filmes que viram seriados, festivais nacionais de madrugada que quase sempre mostram filmes da Globofilmes, etc. Ainda bem que a internet chegou pra dar uma sacudida nisso.
Recentemente, Ângela Davis, esteve no Brasil no Festival Latinidades Afro Latinas 2014 e fez um alerta criticando a presença de negros no poder:"Não significa somente trazer pessoas negras para a esfera do poder, mas garantir que essas pessoas vão romper com os espaços de poder e não simplesmente se encaixar nesses espaços" afirmou. Quem comanda MESMO um filme é a tríade: roteirista – produtor (a) – diretor (a). Falar sobre racismo em meios de produção hoje é tranquilo ou ainda significa tema tabu entre aqueles que comandam uma produção?
Angela Davis é uma diva. E mais uma vez nossa diva-guerreira está certíssima. Trata-se de um tema extremamente tabu, também dentro do ambiente cinematográfico e de produção audiovisual brasileira. Por exemplo, em 2011 fiz assistência de direção do longa-metragem“As Mães de Chico Xavier”, estrelado por Caio Blat, Vanessa Gerbeli e Herson Capri, e dirigido pelos grandes amigos Glauber Filho e Halder Gomes.  No filme, em determinada cena improvisada, precisavam de um engraxate pra limpar o sapato do protagonista, já que o filme se passava nos anos 1980. Aí pessoas da produção escolheram um colega da equipe que era motorista. Tanta gente pra escolher, e escolheram justamente ele, que tinha a pele mais escura da equipe. E eu rapidamente levei minha insatisfação à assistente que tinha escolhido ele. Perguntei: “sei que toda e qualquer profissão honesta é digna, mas porquê, necessariamente, o engraxate tem que ser negro?” E houve o inicio de um pequeno celeuma.

Então, se você chegar num set de filmagens de uma equipe profissional de cinema no Brasil, você vai ver que as funções mais importantes, as de maior poder hierárquico, reflete a realidade socioeconômica, ou seja, quanto mais braçal o cargo, mais escuro é o profissional desse cargo. Agora vai falar sobre isso pra você ver o desconforto que você causa! Dão logo a entender que o racismo está nos olhos de quem vê. É uma questão muito preocupante. O fato é que temos muito pouco autores(as)-cineastas negros e negras. E quando falo de autores(as)-cineastas, me refiro a roteiristas, produtores, realizadores e diretores de fotografia – posições de maior destaque.

Por que o cinema feito no Brasil não se arrisca tanto em gêneros como ficção cientifica, terror, fantasia... O que nos falta para avançar nesse quesito? Dinheiro? Material? Público?...

Acontece que, como temos uma tradição polarizada entre a reflexão social (influenciada pelo neo-realismo italiano e consagrado pelo pessoal do cinema novo) e uma tradição cômica dentro de um padrão industrial (que vem desde os tempos da chanchada passando pela pornochanchada). Nunca tivemos uma estrutura econômica e industrial que nos permitisse, enquanto cinematografia, investir em certos estilos, como ação e aventura, por exemplo.

É como se a gente fosse fazer filmes de gênero pra competir contra quem já é mestre nessa técnica, certo cinema pirotécnico americano que ostenta efeitos especiais por um lado e que, por outro, apresenta uma narrativa extremamente limitada e engessada em sua estrutura.

Então, nossa tradição cinematográfica meio que não nos permite competir com Hollywood. Nosso cinema tem uma tradição mais voltada pra Europa e, por conseguinte, à nossa própria formação cinematográfica latino-americana. Aquela coisa combativa, de gritar ao mundo que somos inovadores em nossa própria maneira de se contar uma história, visando formação de plateia ou mesmo a um publico cativo. Nossa tradição comercial é o melodrama, desde os tempos dos estúdios da Cinédia (de Adhemar Gonzaga e Humberto Mauro, nos anos 1930), que flertava com os melodramas das radionovelas, e também as comédias populares e carnavalescas, frutos de nossa rica tradição cômica, que remonta a antes mesmo da chanchada (gênero cinematográfico genuinamente brasileiro, desenvolvido nos estúdios da Vera Cruz e da Atlantida na década de 1940/50). Nosso cinema reflete, ri ou avacalha a nossa própria condição social e política.

Somente nas experiências tresloucadas do cinema marginal brasileiro, arriscávamos a fazer filmes de gênero assumidamente toscos, muito mais pra tirar uma onda do que propriamente um filme de gênero (o terror de Zé do Caixão, uma ficção  científica de Carlos Manga, etc). Ao longo da historia do cinema brasileiro, já se fez inúmeros filmes de ficção cientifica, por exemplo, mas sempre nesse viés comico.

No curta Sonhos Interrompidos você dá um depoimento em que cita “outras formas de solucionar problemas” contra a violência. O cinema, ou a arte em geral, poderia ser uma das fontes de solução?
Sem dúvida. O cinema, a arte em geral, faz parte de um capital-cultural importantíssimo pro nosso povo. Temos que aprender a gerir isso. A criar nossos espaços, nossos festivais, nossos circuitos de dança, de teatro, de cinema, espetáculos em geral. Temos que nos consumir mais nesse sentido. Tanto como criadores quanto como gerentes disso tudo. Pensar, criar, consumir.

Em “Sonhos Interrompidos”, temos o retorno de Nadí, num tom mais documental. Foi um filme encomendado pelos membros de um atuante grupo negro militante, aqui de Fortaleza, chamado “Consciência Negra em Movimento”. Um grupo de pretos e pretas atuantes e inteligentes, que estão firmes e fortes na luta contra o racismo. Me procuraram e pensamos esse trabalho juntos, numa mesa de restaurante. Chamamos algumas pessoas e eu escrevi e dirigi aquilo que o grupo todo idealizou. Só que a coisa tava pesada demais na edição, e optei por uma edição mais positiva da coisa, ao invés do tom derrotista que estava.

Nem fiz muita publicação desse trabalho porque o vídeo infelizmente gerou uma polêmica dentro do grupo. Até hoje não sei se ficaram insatisfeitos com a edição do vídeo em si ou pelo fato de que eu, desavisado, publiquei o vídeo no youtube, sem saber que eu precisava pedir permissão ao grupo. Pode ter sido um misto dos dois. Gerou certo mal-estar, mas foi coisa de momento.  Tô de boa. Tratam-se de pessoas articuladas e bacanas.  A vida é assim mesmo. Nem sempre agradamos a todo mundo. Divergências são comuns em qualquer grupo ou família.
 Por mais que hajam divergências, o que importa é o respeito. O mais importante é que a mensagem chegue até as pessoas. Nossa produção já é tão tímida ainda, né?! A produção de cinema negro (documentários, curtas, longas, etc) já é tão escassa, tão complicada, que eu acho que quanto mais for publicado e exibido, melhor. Precisamos de mais produção de nossos filmes, romances, livros acadêmicos, espetáculos, poemas... mais debates, mais opiniões, mais pontos de vista.  Precisamos criar mais espaço pra nós mesmos(as), né não?!

Curioso o movimento que alguns cineastas tem com a música e a influencia dela em seus trabalhos. Wood Allen, Kubrick, Scorsese, Sofia Copolla, Scheffer, Spike Lee são alguns que trabalham a partir da musica. Em minhas pesquisas, vi que você tem uma relação muito próxima ao rap. Qual a influencia que ele exerce em seu cinema?

Eu e o rap somos “amigos” de longa data. Tenho 37 anos, mais ou menos a faixa etária do hip-hop. Nasci nos Estados Unidos em 1976, porém, filho de pais nordestinos. Nos anos 1980, quando eu vivia em Raleigh, Carolina do Norte, a música que eu ouvia em casa era Luiz Gonzaga, Gilberto Gil, Chico Buarque, etc. Na rua e nos ônibus escolares, o que eu ouvia era Public-Enemy, Fat Boys, Run DMC, 2 Live Crew, De La Soul, Michael Jackson, etc. Então isso tudo fez muito a minha cabeça.

A gente respirava rap, em sua fase mais contestadora. Os caras passavam a ideia certa. Noções de luta, de arte engajada. Aprendi a desenhar por causa dos grafites que eu admirava. Escrevia letras de rap em forma de poemas, e até hoje sonho em gravar umrap. Nem que seja por desencargo de consciência, porque talento eu não tenho NENHUM! hahaha.

Então, procuro estruturar meus filmes de forma ritmada como um rap audiovisual, seja cadenciado, seja acelerado, mas sem necessariamente usar rap como trilha sonora. Posso estar enganado, mas que eu me lembre, dos mais de 4 filmes/curtas que realizei, nunca usei trilha de rap em nenhum, a não ser nos créditos finais de Pode Me Chamar de Nadí, que usei aquela musica linda do Rappin Hood “Us Guerreiro”, que fala muito da nossa condição enquanto afro-brasileiros.

Então, o dialogo entre a forma como faço filmes e o rap está lá, “vivão e vivendo”, como se diz. E foi através do rap que cheguei a gostar de jazz, e de soul. Mas não só o rap faz parte dessa minha salada de influências, o samba e o afoxé são ritmos que me encantam demais também.


Brincando nos Campos do Senhor, Pixote e Cidade de Deus ficaram famosos no mundo inteiro por usarem atores amadores ou não atores. Vi que você gosta também de usar esse tipo de ferramenta. Quais são os prós e os contras de usar essa técnica tão adotada por cineastas?
No esquema de produção de filmes que eu adoto, vejo muito mais prós do que contras. Explico: meu esquema de produção é urgente. Filmes-crônicas. O realismo é latente. O naturalismo é essencial.  A influencia do cinema documentário é viva demais nos filmes que faço. E o cinema, ao contrario do teatro, tem esse poder de absorver e dar significado ao mínimo movimento de uma pessoa. Um franzido de testa gera um significado. Um olhar torto, outro significado. Se o ator ta nervoso, por mais que ele dissimule, a câmera vai captar.

Não gosto de caras e bocas e nem de caricaturas.  Gosto da tensão que um ator ou atriz amador(a) traz consigo diante de determinada situação. Por isso que eu geralmente ensaio, faço exercícios cênicos, sempre baseado em improvisos, pra não mecanizar o ator ou atriz. Esse ator ou atriz me ajuda a construir a personagem. Cria junto comigo. A relação é ótima. Uso exercícios do grande dramaturgo Augusto Boal e da teatróloga americana Viola Spolin. Pessoas que extraiam a maior naturalidade dos atores e atrizes sem técnica.

Claro que existem contras. Gente que trava na hora, essas coisas. Mas tudo é uma questão que precisa ser bem trabalhada nos ensaios. Até hoje não tive problemas maiores. Nunca trabalhei com atores profissionais famosos. Espero também trabalhar com atores e atrizes que admiro muito, como Lázaro Ramos, Neuza Borges (com quem tive o prazer de conviver em um trabalho), Antonio Pompeu, Cosme dos Santos, Sheron Menezes, Jonathan Haagensen... e um sonho especial de um dia trabalhar com Zezé Mota.


Pergunta final: Você se declara um cineasta ou um cineasta negro? E por quê...

Sou tímido, mas quando me perguntam como quero ser apresentado, sempre me declaro um cineasta negro. Pensa bem, já somos tão poucos né?! E nossas maninhas negras realizando filmes são tão poucas também, que acho extremamente importante essa declaração como afirmação mesmo, sabe. É como a resposta no censo do IBGE. É importantíssimo se declarar negro ou negra. É como se eu dissesse: nós existimos nesse meio. Nós existimos enquanto autores(as), criadores(as), doutores(as), engenheiros(as), etc. É importante pra dar visibilidade. Mais importante e fundamental ainda pra causar impacto e consciência politica e racial pra molecada.
Porque na verdade quando você se declara negro, ou negra, dependendo da ocasião, causa certo estranhamento, certo mal-estar. E isso acaba abrindo espaço para debate. E aí, quando você justifica e chama pra si a negritude, você está fomentando uma consciência de nossa própria condição, de orgulho de nossa herança africana, de um povo fundamental pra nossa identidade. Ao fazer isso, estamos invocando Lélia Gonzales, Stuart Hall, Carolina de Jesus, Bob Marley, James Baldwin, Frantz Fanon, Amilcar Cabral, etc.

O preconceito ainda é muito grande em nosso país. O racismo é muito grande. Apesar dos avanços, os negros ainda estão muito associados a empregos baixos, à favela, à subserviência, ao crime, ao esporte, ao exotismo, enfim, a atividades que não impliquem a produção intelectual. Se boa parte do nosso povo ainda se encontra em situação desfavorável, isso se dá por séculos de opressão pré e pós abolição. Somos um povo guerreiro, de lutas e conquistas. De dor e de dança. E essa afirmação de nossa negritude é nosso grito de libertação diário. Afinal, o sorriso no rosto de quem já chorou, consegue ser mais belo que um sorriso comum. 

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Entrevista: Débora Almeida.

Débora Almeida
Conheci Débora Almeida na apresentação do seu espetáculo solo Sete Ventos aqui em Salvador. Aliás, monólogo estupendo, lindo de se ver, texto ótimo, bom humor e drama equilibrados, participação da platéia sem constrangimento da mesma, tudo de muito bom gosto. Logo depois do espetáculo, aconteceu um bate papo com a atriz, onde a platéia teve contato com uma pessoa doce, engajada, com sorriso largo, conquistou todo mundo no primeiro momento. Em meio a tantas atividades que faz e a folia do Carnaval, Débora nos concedeu essa entrevista. Nela revela seu processo de criação, sua carreira e sua visão sobre o teatro brasileiro e também é claro sobre cultura negra. É provocada e provoca de volta, como toda guerreira que domina as tempestades...

Sete Ventos é um monólogo teatral baseado em depoimentos de mulheres negras e no mito de Iansã. Nele voce está como atriz, mas também como produtora, diretora, pesquisadora e dramaturga. Nesta experiência o que trouxe da Cia dos Comuns para abrilhantar o trabalho em Sete Ventos?

Na Comuns eu fiz de tudo porque na Comuns a gente faz de tudo. Lá o ator é estimulado a não ficar somente na posição de intérprete. A gente improvisa, pesquisa, produz, inclusive o Cobra (diretor da Cia) ressalta o tempo todo como isso é importante, no sentido, de sermos donos da nossa arte, atores em todos os sentidos. Cada um, além de ator, acaba se destacando mais em um ou vários lados e, como eu experimentei de tudo, acabei estando em todos os setores do espetáculo naturalmente. A experiência de ter passado pela Comuns me possibilitou dar vazão a outras potencialidades que eu já tinha, mas que estimulava pouco ou timidamente.

Voce também é professora de teatro em escola da rede pública de ensino no Rio de Janeiro. Temos a concepção de que o trabalho neste setor é sempre ensinar. Mas o que de lá traz de conhecimento com seus alunos para a sua carreira como atriz e produtora profissional?

Costumo dizer que as crianças de sala de aula apontam sempre uma nova possibilidade, apontam sempre algo que dialoga com o teatro contemporâneo, pois explodem todas as convenções teatrais, e isso é muito bom, pois apontam novas possibilidades, como, por exemplo, a relação com a plateia. Elas já trazem a proposta para assuntos pesquisados por vários artistas sem saber, sem teorias, baseadas na vida que está acontecendo ali naquele momento. É incrível. As crianças não deixam o meu olhar ficar parado, olhando em uma só direção. Elas sacodem o tempo todo e isso, para o artista, é muito bom.

Como foi o processo de construção do monologo Sete Ventos? O texto, as personagens, o artifício de se dirigir...

Foi uma pesquisa iniciada ainda em 2008. Eu estava pesquisando para o mestrado e o foco era: Iansã e Teatro negro. A pesquisa sobre o universo feminino me acompanha desde o desde o meu primeiro espetáculo na Comuns.  No meio do caminho resolvi fazer um espetáculo, queria experimentar o que estava pesquisando. Daí, aliei à pesquisa teórica a pesquisa prática, com laboratório prático, improvisando na cena com base no que eu estudava e produzia teoricamente. Daí começou a surgir o texto. Eu improvisava, escrevia um texto baseado no improviso e depois voltava para a cena para ver se o que foi escrito servia.  Comecei a organizar as cenas criadas nos temas que eu queria tratar e daí fui organizando o texto. Com o passar do tempo, comecei a chamar os outros artistas da ficha técnica. Primeiramente a Aduni, que quando viu que eu já tinha uma pesquisa e toda a noção estética do que eu queria me disse que somente eu poderia dirigir o espetáculo, pois já sabia tudo o que queria fazer. Daí, a Aduni se propôs a fazer a  supervisão teatral. Depois fui trazendo os outros artistas, falando sobre o trabalho e a pesquisa. Em 2009 dei um prazo para tudo ficar pronto e resolvi estrear.

Em Sete Ventos é um dos poucos espetáculos que vi com temática negra em que o humor está presente como característica intrínseca do espetáculo. E um humor saudável! Muitos espetáculos tocam na “questão” do negro de forma séria, dramática... Por que escolheu o humor para compor as personagens negras que faz no palco?

Interessante você me falar isso, porque nunca vi o humor no espetáculo dessa forma, nem penso que seja uma comédia. E o humor não foi uma escolha, ele simplesmente veio porque eu sou assim: penso muito sério e ajo com seriedade e também com humor, e em Sete Ventos você vê a tragédia e a comédia juntos. Eu sou assim. Daí a minha obra só poderia ser assim também. Mas não acredito no humor com uma função de simples entretenimento distanciado da realidade, isso é alienação e submissão ao que já está posto. O humor distancia com o riso, mas te faz pensar sobre o ridículo da situação em que nos encontramos e como somos ridículos em aceitarmos. Há situações relacionadas às questões negras que são tão surreais que parecem piada, mas são verdadeiras e doloridas. Por que eu rio de uma mãe desesperada dizendo que os filhos claros que ela tem são filhos dela sim? Porque o racismo não nos dá o direito de sermos diversos da imagem comum do negro, e isso é doloroso. A forma mostrada pode até causar algum riso, mas quando paramos de rir vemos o quanto isso é doloroso, não é engraçado.  A gente até pode rir, mas quando a tonteira causada pelo riso passa, dá vontade de chorar. Quando eu era criança nunca achei engraçado as minhas vizinhas me xingarem e se valerem da cor negra “mais clara” do que a minha para isso, e isso me causava dor. Causa riso no teatro porque é ridículo e nós vivemos em uma sociedade que permite que vários ridículos aconteçam. Mas o ridículo não é engraçado, é pior do que a tragédia. Essa é, inclusive, a diferença entre o humor e a tragédia. A tragédia nos faz chorar momentaneamente, a gente acha lindo e depois vai para casa com a sensação de alívio “Opa, chorei, mas já passou.”, a comédia te pões contra a parede e te faz perguntar “Por que eu gargalhei diante de algo tão sério? O que eu vou fazer com isso agora?” Mas eu nem vejo tanto humor assim no espetáculo, vejo que há cenas de humor da mesma forma que há cenas trágicas. Não compus o espetáculo pensando nisso, meu foco principal era falar da mulher negra e contar as suas histórias. Me baseei na vida, e a vida é trágica e cômica a todo o tempo.

Cena de Sete Ventos, foto Guina Ramos
Vemos muitos espetáculos com atores negros no Brasil diretamente ligados a temática negra...  Ou seja, a sua cor importa dentro da trama. Existem casos como o de Lázaro Ramos, ele fez espetáculos/filmes que sua cor está isenta no palco ou no texto. No cinema/teatro norte americano vemos casos de atores e atrizes que fazem papéis que não são necessariamente escritos para negros... Atualmente como se constrói, para voce, o lugar do ator negro na dramaturgia brasileira?

Quem está construindo o lugar do ator negro na dramaturgia brasileira é o artista negro porque os outros artistas, em sua maioria, não pensam nem que existem pessoas negras, quem dirá atores negros, lembram somente quando o personagem é um bandido que vai passar batido lá atrás da cena, porque se o bandido for o protagonista ele vai ser branco. A invisibilidade do negro na sociedade brasileira se reflete na dramaturgia e na arte, de forma geral. A gente não está representado em lugar nenhum, só em lugares gerenciados por nós. Vi uma revista feminina famosa dia desses, folheei do início ao fim e não tinha um negro, nem em propaganda.  E o pior: o editorial de moda era no Caribe, mas a modelo era branca feito uma folha de papel. Os negros apareciam como papel de parede das fotos. É assim que os brancos nos veem: como papel de parede para as histórias deles. Para eles isso é normal, pois já tem o espaço deles garantido há séculos. O que está mudando é o que está sendo imposto pelas leis criadas pelo segmento negro e que a maioria dos não negros critica, pois não quer perder o seu espaço.  Agora, não existe essa história de ator negro descolado da cor negra. O adjetivo racial sempre aparece porque há um lugar onde a sociedade nos colocou e quer que continuemos, mesmo que prosperemos economicamente. Isso faz com que um personagem negro, mesmo sendo de classe média alta tenha em alguma parte da sua estória um traço que eles, o brancos, consideram característico do povo negro, como um pai alcoólatra, um irmão bandido ou viciado, mesmo quando o estigma não está no personagem negro, ele acompanha a vida do personagem através de algum parente próximo. É o “pé na senzala”, a mensagem intrínseca que diz “Você está aqui, mas não é um de nós. Seu passado te condena”. Ou “Você não é bom o suficiente, pois a sua história é um desastre”. E o pior é que quem escreve acha que está sendo legal, pois está descrevendo uma historia tipicamente negra, pois todo negro passa por isso, “Toda família negra é assim”, pensam. O racismo é tão normal entre a gente, que ninguém nem pensa que descrever um negro sempre com passado de banditismo também é racismo, acha que é normal. Eu não tenho um pai que bate na minha mãe, não tem bandido e nem viciado na minha família, meu pai era advogado e eu sou negra. Existem famílias negras assim também, somos normais. Esse foi o principal motivo que me impulsionou a produzir Sete Ventos, para mostrar que somos normais e que a bebida que está sobre a nossa mesa nem sempre é cachaça, como gostam de mostrar, pode ser água, pode ser café. As nossas histórias, as de nossas famílias são bonitas e tem que ser contadas por nós, temos uma gênese digna de reis e rainhas, de pessoas boas e quando algo de ruim nos acontece não é porque somos de sementes ruins, haverá uma explicação histórica para isso , pois somos seres humanos e vivemos uma história, e no caso do povo negro, fomos retirados de nossa terra e trazidos cativos e escravizados para o Brasil, mas a nossa história tem mais de 5 mil anos de riqueza e realeza, sabedoria e mitologia, e não somente 500 anos de escravidão que querem nos jogar pela goela abaixo.

Voce tem experiências em teatro, televisão, cinema, produção, ensina teatro, é pós graduada em Arteterapia em Educação e Saúde. O que de uma experiência voce leva para a outra, complementando ou até melhorando as suas varias identidades artísticas?

E ainda sou escritora e militante negra! Tudo faz parte da mesma identidade, mas minha formação primeira é ATRIZ e essa é o carro chefe. Todas as minhas formações vieram por causa do teatro e uma coisa veio puxando a outra. Eu só fazia teatro adulto, um dia fiz teatro infantil e me encantei com as crianças, daí quis ensinar teatro também. Também precisa me sustentar. Depois, o magistério me mostrou que se eu buscasse outras informações, minha prática em sala melhoraria, daí fui cursar Arteterapia em Educação e Saúde. A produção veio como uma necessidade de me apropriar do meu trabalho, porque ser ator no Brasil é complicado e ser ator negro, é mais complicado ainda.  O bom disso tudo é que eu fico com uma visão macro da coisa, não fico só no meu mundinho. Saber o que está sendo feito no teatro e estar produzindo teatro, estar conectada com a política, ser militante negra, me ajuda a orientar melhor os meus alunos e o olhar deles me ajuda a entender o que está sendo construído hoje. O exercício da escrita é contínuo, pois tenho que produzir para o teatro e para a sala de aula. Como atriz, depois que eu comecei a produzir me senti mais forte, pois agora eu tenho o volante nas mãos. Mas a maior contribuição foi a entrada na Militância Negra, a consciência de quem sou e do que sou feita, onde estou e de com quem eu posso contar me fortalece todos os dias antes de sair de casa, na rua e quando eu volto, porque ser negro no Brasil, é muito difícil. A cada minuto você tem um problema para resolver.

No espetáculo Sete Ventos voce provoca muito o público. Começa logo o espetáculo perguntando “que cor tem meus olhos?”, “Como é o meu cabelo”... E quando a resposta não é condizente com a real cor, textura daquilo que se refere?... Voce está falando de um cabelo que é considerado ruim, uma pele que é dita como morena... Como o publico reage a esta parte do espetáculo?

Já teve gente até chorando com as perguntas, que parecem tão simples, né? Tem gente que fica com medo de me magoar dizendo que eu sou negra, acham que vou ficar ofendida, mesmo sabendo que é um espetáculo baseado em depoimentos de mulheres NEGRAS. Mas a intenção é essa mesma, colocar em questão o que mais incomoda: me chamar de negra, dizer que meu cabelo é crespo, que a minha pele é negra.É discutir em trânsito o assunto. Isso faz o espectador repensar os seus paradigmas. Muita gente pira porque descobre que sempre foi uma pessoa legal, mas com atitudes racistas. É para desconstruir mesmo. Teve um dia em que o movimento negro estava em peso no meu espetáculo, estava lindo. Daí um cara me chamou de morena, o pessoal começou a falar na hora, eles começaram a discutir. Eu achei ótimo! É isso aí.  Porque o racismo se combate no cotidiano. No dia a dia, as pessoas tem medo de chamar alguém da minha cor de negra, logo também terão no espetáculo. Ao falar disso no espetáculo eu pergunto por que do medo da minha cor. Daí, o espelho que me reflete, reflete também o pensamento da plateia.

Voce mora em um estado que é pólo da teledramaturgia no Brasil. Muito mais que São Paulo. E é almejado por muitos atores brancos/negros fora deste circuito. Qual a real situação do ator negro no Rio de Janeiro? Dá para sonhar com carreira tranqüila, digna e com bons papéis?

Negro na Tv brasileira, com raras exceções, só faz papel de bandido, empregado ou escravo, passa por detrás da pilastra e dá um texto monossilábico, pronto, e mesmo quando a novela é sobre escravidão o personagem principal é branco.  Na TV, nem a nossa história está nas nossas mãos. Para que isso mude, é preciso educar muito quem está lá dentro, pois a classe média alta, que é quem comanda a TV ainda tem uma visão muito estereotipada sobre o negro brasileiro.  Temos também que rever os papéis, nossas famílias são sempre desestruturadas, com homens alcoólatras, mulheres submissas ou sexualizadas e filhos entregues à bandidagem. Chega, né. Agora, ator nenhum, nem preto, nem branco pode sonhar que vai ser tudo fácil, porque isso é pra uma minoria. Para o negro é pior, pois na tv, enquanto lançam um ator branco por semana, um ator negro é lançado somente a cada uma década (quando é), e a gente não tem gente nossa no comando, com direito de voz e com uma visão mais engajada.  Daí, a gente faz como todo grupo de excluídos faz: nós criamos a nossa própria forma de produzir. Só que para isso precisamos de dinheiro, e ele ainda está nas mãos de alguns brancos. A gente já está avançando e outros lados, tem o Lázaro na TV Brasil, por exemplo, mas é em uma TV fechada.

Vemos muito o discurso de que fazer arte no Brasil não é fácil. E realmente não é. Para uma atriz negra então fácil é que não deve ser. Em seu currículo muitos de seus trabalhos são de exaltação e respeito à cultura negra.  Mas sei que o que é oferecido na maioria das vezes é justamente o contrário. E logo este contrário subalterno dá dinheiro. Como é viver nesta dicotomia da arte no Brasil?

Olha, eu tenho uma grande sorte na minha vida, digo sorte porque muitos negros não sabem o que é isso e exatamente porque não sabem, vão morrer se odiando, querendo alisar o cabelo, se achando errados, querendo nascer de novo e voltar branco. Eu tenho o Movimento Negro na minha vida e isso me dá o espelho que serve para eu me ver e me proteger, meu espelho é imagem refletida com a beleza da história do meu povo e o escudo que me protege. Novamente eu digo: o movimento negro me mostra quem eu sou, onde eu estou e com quem eu posso contar e é isso que me alimenta. Não sou filiada a nenhum partido e nem de nenhum movimento com nome e sobrenome, mas faço teatro negro, estou em um fórum de arte negra, estou no movimento cultural negro e sou filha de Oyá. Isso me dá força para aceitar somente papéis que eu considero dignos para uma atriz negra brasileira, porque eu sei que um ator negro em cena representa toda uma população. Agora, não sou mulher maravilha, muitas vezes fico casada e penso que o melhor seria estar alienada a tudo, ganhando o meu vil metal. Mas basta pegar o telefone e ligar para um de meus pares, artistas negros que conheci na militância negra, que tudo volta a “escurecer”. Ainda bem que eu tenho o movimento negro na minha vida, ainda bem que eu tenho meus amigos artistas negros militantes na minha vida, ainda bem que eu fui da Comuns, que eu tenho o Cobrinha, sou filha da minha mãe Dalva e neta da minha avó Aurea, irmã de Daniela, filha de Francisco, tendo como amigas e amigos pessoas que estão ao meu redor celebrando e lutando . 

Em Sete Ventos, uma de suas personagens é advogada que diz que não ficou rica, pois defende casos de racismo, pessoas negras... Como voce vê a relação entre artista e público consumidor de arte negra no Brasil?

Ela ainda não ficou rica porque não vendeu a sua ideologia, está trabalhando defendendo pessoas negras, em sua maioria trabalhadores discriminados e pessoas simples, e essas não vão pagar um milhão. E ela acompanha essas pessoas, orienta sobre o que farão com o dinheiro da indenização. Seu trabalho é de defesa de direitos e educação. A comunidade negra está querendo consumir cultura negra e gosta quando isso acontece, mas, nós artistas negros esbarramos com algo que é o nosso maior empecilho: a falta de dinheiro. Temos grandes artistas negros, mas precisamos de dinheiro para trabalharmos.  É preciso que se pense a arte negra no âmbito das políticas públicas, ou seja, precisamos de editais específicos para as nossas expressões e precisamos ter uma melhor entrada nos editais de cultura e arte já existentes, ter pessoas na comissão julgadora que entendam de arte negra e não nos classifiquem como projeto social ou folclore. Outro problema grave é a falta de mídia. Esse é o item mais caro de um projeto cultural e o que dá mais trabalho para implementar. Não temos ainda uma boa entrada na mídia oficial porque acham que a gente é específico demais ou nos taxam de racistas ao contrário. E ainda tem a falta de vontade, o preconceito. “Ah, é peça de preto reclamando, é peça de orixá”. Brecht também reclama, mas como é branco pode, né. Paixão de Cristo pode, mas candomblé não pode. Por que? Porque o racismo diz que a religião de matriz africana é errada e que o estado, que deveria ser laico, pode e deve difundir ideologias cristãs, pois o pensamento da maioria que cultua as religiões cristãs diz que o certo é o mundo todo ser cristão, que temos que ter um Deus único, que são os único certos. O negro quer se ver em cena sim, mas para que isso aconteça é necessário que o artista negro tenha condições para produzir e difundir o seu trabalho, e com uma verba digna, não com um dinheiro que vai pagar meio cachê para a equipe obrigando todos a terem outras fontes de renda além do ofício de ser artista. Queremos igualdade no direito de expressarmos nossa arte e realizamos nosso trabalho.

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Entrevista com o estilista Cid Brito.

Apreciada pelos homens (de bom gosto!) soteropolitanos, a marca InCid do estilista Cid Brito (ao lado na foto da modelo Priscila em desfile no Ensaio do Cortejo Afro) vem crescendo a cada ano com coleções sempre coloridas e inovadoras. Cid concedeu entrevista ao Blog Película Negra esta semana. Nela ele fala sobre seu talento que desenvolveu no bairro do Engenho Velho de Brotas, além da moda masculina que edifica, seu trabalho junto ao Carnaval da Bahia e o processo de construção das coleções. Cid Brito, além de um talento enorme, é dono de uma simpatia forte, o que faz a visita ao seu showroom na Avenida Centenário, garantia de uma ótima conversa, além de looks maravilhosos que são certeza de um visual único dentro do seu guarda roupa.

PELÍCULA NEGRA - Salvador conhece o Cid Brito estilista, artista plástico e aderecista... Qual identidade de trabalho veio primeiro e qual a que toma mais parte do seu tempo?

CID BRITO - Comecei a desenvolver trabalhos como artista plástico ainda na fase da escola secundária, tendo meus trabalhos escolares sempre recebendo destaque.  Ainda na adolescência, participando de quadrilha junina no engenho velho de brotas, comecei e a desenvolver figurinos e adereços temáticos, sendo premiado por diversas vezes. Hoje em dia, ocupo a maior parte do meu tempo elaborando novos looks e estudando tendências do mundo da moda sempre pensando nas próximas coleções.

Primavera Verão  2011 - Enquanto o verão não vem”

Você já fez os figurinos de bandas como Psirico, do qual concorreu ao premio Dodô e Osmar em 2009, 2010 e 2011. Cortejo Afro também foi agraciado pelo seu talento. Como é o processo de construção dessas roupas e adereços? Pode soltar a imaginação sem limites, ou existem espaços dentro da criação que você não pode “exagerar”?

A minha relação com o Psirico e o Corte Afro é bem parecida. Pelo fato de trabalhar com esses grupos ha muito tempo (10 anos com o Psirico e 04 anos com o Cortejo) acabou se criando uma relação íntima e de confiança. Existe a liberdade de criação obedecendo ao critério de cada grupo, tema e ocasião. O que torna mais fácil a comunicação entre o meu estilo e os estilos dos grupos Psirico e Cortejo Afro é relação com o moderno com toque de autenticidade... O exagero não pertence ao meu estilo, sou minimalista e procuro convencer meus parceiro-clientes que menos é mais... Com 20 anos na estrada como figurinista, recebi três indicações ao troféu Dodô e Osmar como melhor figurino masculino com O Psirico e duas indicações com Cortejo Afro, como melhor fantasia afro, sendo vencedor nas edições de 2010 e 2011.

Como é o processo de criação dos figurinos para blocos de carnaval e a sua marca InCid? Existe diferença entre os dois?...

O que se tem em comum entre os dois trabalhos é a pesquisa realizada para desenvolver uma coleção ou figurino. No caso dos figurinos dos blocos ou banda que tocam no carnaval, geralmente os responsáveis elaboram um tema e desenvolvo de acordo com o trabalho proposto. No caso da inCID, como sou o único responsável pela marca e criação, busco inspiração em coisas ou pessoas que fazem parte do meu cotidiano.

A grife InCid faz moda masculina. Por que justamente escolheu o homem para vestir?

Verão Crítico 2010/2011
Lembro que minha relação com roupa começou com influência de minha mãe. Ela sempre mandou fazer minhas roupas de festa de natal, São João e aniversários de amigos e parentes. Com isso, sempre fui muito elogiado pela criatividade e exclusividade. Comecei a gostar daquilo... Alguns amigos chegavam a pedir os modelos emprestados para copiar ou para vestir em outros eventos. Mais tarde, comecei a criar minhas próprias roupas e customizava outras já existentes. Percebi que a moda masculina sempre foi muito básica, o homem moderno é mais exigente, tem mais ousadia. Pensando nisso, resolvi focar nesse público e criei a inCID, que veste o homem moderno e que tem atitude...

InCid é uma marca bastante conhecida pelas suas cores. Aliás, muitos estilistas soteropolitanos usam e abusam das cores nas suas coleções. É quase um traço baiano o uso de tonalidades fortes. O que diferencia a InCid de outras marcas/coleções soteropolitanas?

As cores fortes é uma marca da Bahia, principalmente de Salvador. A moda criada numa determinada cidade, acaba obedecendo as influencias nela existente. A principal diferença da inCID em relação a outras marcas é, principalmente as modelagens de suas roupas, além dos outros atributos, como atendimento personalizado e exclusividade em muito de suas peças.

A sua marca já tem sete anos de existência. O que mudou no estilista Cid Brito do começo da experiência com público para hoje?

O contato com o público é sempre uma nova experiência. Todo o dia lido com pessoas de diferentes estilos e com diferentes formas de pensamentos e gostos. A cada dia aprendo com o que observo. Não sei se trata de mudança e sim de adaptação. Hoje, as coisas acontecem com mais rapidez, tenho que me adaptar a mudanças de acordo com as exigências das demandas.

Quais são as suas influências culturais e também no mundo da moda? Podemos ver traços da moda internacional no seu trabalho?

Outono Inverno 2011 Metrópolis
Fui criado em um bairro popular, onde a cultura faz parte do DNA de seus moradores. Participei de afoxé, fui idealizador de quadrilha junina, líder de equipe de gincana de bairro. Esse contato com as culturas de bairro foi fundamental pra o desenvolvimento da minha linha de trabalho. No mundo da moda me inspiro no comportamento das pessoas, no urbano, no dia a dia... Com a expansão da internet no mundo moderno e a globalização, a moda segue traços que é comum a todos os povos. É possível encontrar as mesmas tendências em Paris, em NY e aqui em Salvador, obedecendo às particularidades de cada local, como clima, por exemplo, sendo diferencias pelo tipo de tecido e adaptado com “pitadas” de regionalismo.

Voce já fez o trabalho para blocos de carnaval – considerado um grande teatro a céu aberto. Já passou pela cabeça de levar suas ideias para o teatro e cinema?

O carnaval é uma vitrine de tamanho imensurável. A repercussão de um trabalho realizado numa festa como essa extrapola fronteiras nacionais. Estou feliz com o reconhecimento e resultado dos trabalhos desenvolvidos aqui na capital baiana. Cheguei a participar de um projeto para teatro com elaboração de croquis, a peça não chegou a estrear, mas gostei muito da experiência. Adoraria receber outros convites e mergulhar nesse universo fantástico da arte de representar assim como a da sétima arte.

Alguma idéia feita exclusivamente para figurinos e adereços no Carnaval acabou migrando para suas coleções na grife InCid?

Isso ainda não aconteceu

Seus desfiles abrangem outros tipos de linguagens como por exemplo a cultura proveniente de religiões de matriz africana como o Candomblé. Como se dá a construção das performances no desfile. A concepção é inteiramente sua/ Como acontece o processo?

Fiz uma coleção no verão passado que tinha uma ligação muito forte com a água. Nada mais apropriado que homenagear a Mãe das águas, Iemanjá, num desfile temático. Tudo a ver com a Bahia e com o cenário onde ocorreu o desfile, palco dos ensaios do Cortejo Afro. A concepção dos desfiles é determinada a partir do tema proposto para coleção a ser apresentada. Em todos os desfiles realizados, fui responsável pela concepção, mas contei com parceiros importantes que alimentaram essas minhas ideias.

O que podemos esperar da InCid nas próximas coleções?

Atitude. 

Mais informações sobre a InCid clic aqui.

Abaixo o modelo Ramirez Allenderr veste a grife InCid







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segunda-feira, 2 de maio de 2011


ENTREVISTA - JEFFERSON OLIVEIRA.

Jefferson Oliveira
Jefferson Oliveira é ator e coreógrafo ilheense. Vive em Salvador desde 2004. No mesmo ano ingressou no Curso Livre de Teatro da UFBA, originando a montagem de Boca de Ouro de Nelson Rodrigues, dirigido por Paulo Cunha. O ator participou de duas montagens ano passado de grande repercussão na cidade OGUM – DEUS E HOMEM de Fernanda Júlia e AS VELHAS de Luiz Marfuz. Em entrevista ao PÉLICULA NEGRA, Jefferson, fala sobre o ofício de atuar, da cena teatral baiana, diretores, política e também sobre a arte de ensinar o que aprendeu.


Voce é natural de Ilhéus, seguiu o caminho de muitos artistas do interior que vem tentar uma carreira na capital do estado, Salvador. Em 2004, quando chegou, o que destaca de mais difícil e o que lhe surpreendeu positivamente na cena teatral soteropolitana?

Quando resolvi vir para Salvador eu tinha apenas 3 sonhos distintos. Já realizei os três. Lá em Ilhéus já não tinha espaço pra crescer e eu não acreditava que tudo estava ali, e realmente não estava mesmo! Tive professores como Pedro Matos e Equio Reis Grandes ícones do teatro baiano. Em 2004, quando cheguei em Salvador, acontecia o projeto ”Julho em Salvador” promovido por Virginia D’rim. Logo de cara eu falei “È isso que quero pra mim”, essa produção, essa oportunidade de fazer e de ver teatro “profissional” . Mas eu era só um jovem cheio de fantasias e vontades que me motivaram a ter o meu lugar hoje na cena soteropolitana. Mas ainda assim o que me deixa com o pé atrás é o discurso de algumas pessoas respeitáveis do meio que teimam em fazer panelas e só priorizarem “os mais experientes”. Acredito que existe lugar pra todo mundo, mas essa coisa de dizer que fulano, ganha mais porque tem mais tempo de carreira precisa acabar e logo.

Muitos atores reclamam, chamam atenção, para as dificuldades que se têm quando decidem viver de arte em Salvador, outros que conseguem se “dar bem” evidenciam o outro lado. Qual o seu ponto de vista sobre este assunto?


É realmente muito difícil! Muito mesmo! Às vezes constrangedor! Eu vivo só do “ser Ator”. Trabalhei o ano todo de 2010, esse ano já tenho meu primeiro espetáculo. Mas ainda não recebi muito cachê do ano passado, e os desse ano já estão atrasados. Falta compromisso com o repasse de verbas e isso não acontece só com o Governo não. Muitos outros contratos privados não são honrados em datas acordadas, ficamos à deriva, sem ter para quem apelar. Atrasamos o aluguel e contas. Acredito que precisamos de uma política cultural mais eficaz que não nos abandone em momento algum...

Voce não trabalhou somente com teatro, também fez propagandas e atuou em campanhas políticas, as do PT são um exemplo. Como foi para você trabalhar enquanto garoto propaganda de órgãos públicos? De alguma forma te prejudicou?

A primeira coisa que eu penso é como vai ficar minha carreira depois. Fiz.várias campanhas para empresas privadas e isso não me afetou muito. Financeiramente é ótimo! Fui fazer campanhas ligadas ao governo estadual e federal e até mesmo prefeitura, até hoje isso reverbera na minha carreira de uma maneira negativa. É claro que logo no início precisava me estabilizar financeiramente e era uma grande chance, mas você fica marcado e isso é ruim. Em 2006 fiz campanha política em Camaçari e fui ameaçado de morte. Dentro do ônibus, em novembro de 2007 tive que responder a uma senhora porque o metrô ainda não funcionava. Então comecei a entender que de certa forma eu também era responsável, pois era “ O Cara” da prefeitura. E até hoje me devem.

Pesquisando os espetáculos que fez, você participou de montagens que ficaram marcadas no cenário teatral da cidade. A Casa dos Espectros de Ângelo Flávio, Policarpo Quaresma de Luiz Marfuz, Inteiramente Nu, de Deolindo Checcucci, Ogum Deus e Homem de Fernanda Julia, dentre outros. Depois de tantos espetáculos no currículo, o que te chama atenção em um projeto e leva você a aceitar o convite feito pelo diretor?

A vontade de trabalhar mais! Eu sempre fui muito chamado pra trabalhar pela minha versatilidade e minha vontade de aprender. Hoje eu quero saber o que o papel (personagem) me diz enquanto homem. Tento me adaptar ao papel e aprender com ele. Outra coisa é a figura do diretor, sou apaixonado por eles, quando vejo o diretor sem saber o que fazer me desespero, mas sei que ele tem a solução. Gosto também dos que estudam em casa e já chegam prontos. Levo em conta também os colegas de elenco, não da para trabalhar com quem não se tem afinidade! E eu sou turrão pra caramba. Implico facilmente. Mas tenho tido a alegria de sempre estar em projetos vitoriosos. Acredito que o ator faz isso acontecer!

Ao lado de Jussara Mathias, Val Perré e Fernando Santana
em Ogum Deus e Homem dirigido por Fernanda Julia.
Existem profissionais do teatro baiano que ainda não trabalhou e deseja? Quais e por quê?

Muitos. Estou “namorando” muitos. Mas tem um que fiz um trabalho lá em Itabuna .Eu tava novinho ainda e queria muito ter a oportunidade de reencontrá-lo em sala de ensaio. Fernando Guerreiro. Também tem Hebe Alves, e Marcio Meireles. Os porquês não vou responder!! kkkk

Além de ator voce também é coreografo. A impressão que tenho é que o teatro tem muito mais espaço apesar das dificuldades, além de uma predisposição do público baiano em ver espetáculos teatrais. Isso é verdade? Em sua opinião, como anda o cenário da dança na Bahia?

Sinto a dança tão distante do teatro, teve um tempo que vivia nos dois núcleos. Eu me formei na Funceb e isso me fez crescer muito, como homem e como artista. Decidi não ser dançarino e sim coreografo, porque adoro criar. Acho que a dança tem que abrir mais e aceitar mais o teatro e digo isso do teatro também. Sofro muito precoceito por ter sido dançarino. Alguns atores fazem boicotes por eu ter uma predisposição para dança. A dança e o teatro deverian andar mais juntos. A dança na Bahia tem seus momentos de respiração, mas depois é abafada. Acho isso ruim, tem tanta gente boa...

Você vem construindo um caminho diverso na sua carreira como ator e coreógrafo. Ela é permeada por participações em cinema, vídeos, campanhas publicitárias e em projetos sociais para adolescentes e crianças. Centrando neste último ponto, qual o seu objetivo em levar para este público o seu trabalho?

Eu sempre dei aula para crianca e adoro! Agora estou meio parado, mas tenho um projeto de levar o que aprendi para crianças e idosos. Acredito que vai ser bem legal.

A premiada atriz Andrea Elia e Jefferson contracenando
em As Velhas de Lurdes Ramalho.
Voce também ensina a sua arte. Como vê seu ofício do ponto de vista do professor, já que são visões diferentes sobre o mesmo trabalho?

Acredito que é pela educação que a melhoria aconteça. Quando penso em ensinar arte, lembro que eu não tive essa oportunidade. Então está na hora de levar o que eu aprendi a outros e por isso sou feliz em sala de aula. Não me considero um professor e sim um facilitador, pois também sou aluno dos alunos. Acabo aprendendo com eles!

Como foi a experiência ano passado de estar em dois espetáculos super concorridos pelo público aqui em Salvador? As Velhas e Ogum – Deus e Homem. Com foi o processo de construção das duas montagens para voce?

Em média em Salador o que faço por ano são 2 espetaculos! O processo em Ogum foi muito bom, por se tratar de algo muito pessoal pra mim. Minha religião. Por mais que eu soubesse que era teatro, não dava pra não fazer uma ligação com o divino. Mesmo o teatro já tendo essa ligação com Baco, que pra mim e super divino. O processo foi divertido complicado, por contas das relações humanas, mas o resultado foi belíssimo. Em As velhas, já me senti mais maduro enquanto ator! Marfuz é muito bom, quando se trata de ator, ele tem cuidado, e sabe qual o limite. Pra compor meu personagem, voltei muito pra minha infância, para minha vida em Ilhéus. E nas fazendas que minha mãe trabalhou. Reencontrei grandes figuras que ajudaram a compor o mascate, que na minha concepção, marca minha carreira. Sem duvidas um ano onde o homem e o ator se juntaram e decidiram juntos, seguir em frente.

Recentemente em Salvador, Pólvora e Poesia se destacou na cena baiana por ser produzida por um dos atores do elenco. Também já trilhou este caminho de ser produtor/ator? Ou pensa, em um futuro projeto?

Em Ilhéus eu mesmo produzia os espetáculos infantis que fiz. Minha mãe já financiou espetáculo meu com dinheiro do tabuleiro dela. Na época nós trabalhávamos muito com apoio. Lá não existia edital. Hoje penso sim em fazer como Thales, ator de Pólvora! Está na hora de voltar a pensar que uma lata de tinta e um pedaço de tecido como apoio também é bem vindo. E eu acredito que todo esforço é valido! Tenho um projeto pessoal, que esse ano vai acontecer. Eu vou produzir e atuar, com uma grande amiga do meu lado.

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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011


ENTREVISTA: Fernanda Julia.

Diretora de incrível talento e ousadia, Fernanda Júlia veio do interior da Bahia, mais precisamente da cidade de Alagoinhas, para brilhar! De suas mãos sairam espetáculos como Perfil - Só Vendo Para Crer, A Eleição, Shirê Obá - A Festa do Rei e Ogum Deus e Homem (na foto ao lado Fernanda na estréia de Ogum em seu discurso de agradecimento com elenco e referenciais no palco). Em tão pouco tempo de trabalho em Salvador trabalhou em espetáculos que foram marcos no teatro baiano, seja a frente como diretora geral ou em outras funções que exerce como assistente de direção ou operadora de luz e som. Fernanda, é um "novo" talento que se aprimora a cada dia, cada montagem. Digo novo entre aspas, pois em sua cidade como uma desbravadora (algo que todo artista é!) trilhava seu caminho, seu talento junto a Cia de Teatro Nata fundada por ela. Essa menina de 31 anos tem uma alma encantandora e na entrevista abaixo nos abre um pouco de suas visões (sim, são várias!!!) sobre o teatro, academia eurocentrada, cultura negra, teatro em Salvador e outras coisinhas...
Você já foi baiana de acarajé e professora. Ao mesmo tempo em que estava nestas carreiras, na cidade de Alagoinhas, trilhava os primeiros passos como diretora da Cia de Teatro Nata, fundada por você. O que ficou da Fernanda Julia deste tempo de trabalhos paralelos, do tabuleiro e também da sala de aula na nova, hoje diretora de teatro “recém” formada pela Escola de Teatro da UFBA?A Fernanda Júlia que possuía trabalhos paralelos ainda continua, pois apesar de ter me formado e já algum tempo está vivendo exclusivamente de teatro é necessário ter muitas atividades para garantir o salário no final do mês, a diferença é que hoje trabalho exclusivamente dentro da área teatral. O fato de ter sempre me desdobrado em funções díspares como baiana de acarajé, professora e diretora forjou o meu caráter profissional, estas atividades influenciaram todo o meu curso na Escola de Teatro, pois a disciplina e a seriedade que é necessária para ser baiana de acarajé e professora me fizeram encarar o teatro com a mesma seriedade e respeito. É o meu ofício, o que escolhi pra mim, o que quero e gosto de fazer.

A Cia de Teatro Nata tem dez anos de existência, é uma Cia que vem do interior da Bahia, enfrentando toda a invisibilidade que os artistas do interior enfrentam, mas conseguiu se sobressair finalmente. A partir de qual trabalho você sentiu que a Cia tinha amadurecido e poderia trilhar outros caminhos e por que você escolheu este momento?Na verdade tudo é muito processual, o Nata em 2004 começou a enfrentar desafios maiores, pois quando fomos selecionados pelo Teatro Vila Velha para participarmos da mostra a Arte do interior na capital, resultado do projeto Teatro de cabo a rabo e pela primeira vez nos apresentaríamos num palco em Salvador e ainda mais num teatro que tem a história que o Vila tem, percebemos que apartir daquele momento o próximo passo seria definitivo. Ou assumíamos o teatro efetivamente ou não faríamos mais nada. Optamos por assumir o teatro e mergulhar em todas as camadas necessárias para sermos profissionais da cena. Então tudo que veio depois foi a confirmação disso. Estávamos amadurecendo... Mas o momento mais preciso dessa maturidade tem haver com montagem do espetáculo Shirê Obá “A festa do Rei” esta montagem é um divisor de águas para a Cia Nata.
Nesta montagem o Nata ganhou seu primeiro edital público de montagem, trabalhou com profissionais de peso em Salvador como Fernanda Paquelet, Jarbas Bittencourt, Marcelo Jardim, Marilza Oliveira, Thiago Romero. Realizou pela primeira vez em Alagoinhas uma temporada de um mês no Centro cultural da cidade, antes da Cia Nata nenhum espetáculo havia ficado tanto tempo em cartaz o máximo eram três dias. Recebeu três indicações no Prêmio Braskem de teatro 2010 a de melhor espetáculo adulto, direção revelação e recebeu prêmio na categoria especial pela trilha de Jarbas Bittencourt. A Cia afinou o discurso artístico e político e a linguagem estética debruçando-se sobre a cultura africana com foco e inspiração primordial no Candomblé.
A partir dessa montagem o grupo entrou numa nova fase a de profissionalizar-se efetivamente ao ponto de em 2010 ganhar o I Prêmio Nacional de Expressões Afro brasileiras patrocinado pelo MINC e Fundação Cultural Palmares. Na verdade não escolhi o momento ele foi resultado de uma confluência de fatos que nos levou até onde chegamos. Mas a invisibilidade do artista do interior ainda persiste, nós ainda encontramos barreiras enormes para realizar as atividades da Cia, principalmente na nossa cidade.

Dentro do histórico da Cia de Teatro Nata, do repertorio escolhido por você e os componentes da Cia, existem fatores fixos como a cultura nordestina, permeada pela negritude e as religiões de matriz africana. Ao mesmo tempo você já montou textos da Cia de Teatro Os Melhores do Mundo, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos... O que motiva você a escolha de determinada temática ou texto para ser abordada em seus espetáculos?Antes de qualquer coisa temos que pensar o que queremos dizer, porque falar de tal tema e o que queremos com o espetáculo. Após respondermos estas questões é que vamos procurar o texto que caiba no nosso discurso. Existem as nossas preferências temáticas, mas o discurso político, ou seja qual é a utilidade deste espetáculo para o espectador fala muito mais alto do que os nossos devaneios cênicos. Mas devaneamos também.

Nesta estrada percorrida estes dez anos, você com certeza cruzou o caminho de outros diretores. Destes qual você ressalta o trabalho, virando referencia na sua forma de fazer teatro?Eu sou uma privilegiada com tão pouco tempo de carreira tive a oportunidade de conviver com grandes mestres do teatro. São artistas que para além de referências o seu fazer artístico forjaram os pilares estéticos da Cia de Teatro Nata. São eles: Márcio Meirelles, Chica Carelli e o Bando de Teatro Olodum, Hilton Cobra e a Cia dos Comuns, Luiz Marfuz, Ângelo Flávio e o CAN.

Como você enxerga hoje o teatro afro-centrado na Bahia? E como o público de diferentes raças está enxergando esse “novo” teatro em Salvador?O teatro afro-centrado é necessário, urgente e ainda escasso. O povo negro precisa ver-se representado em todas as mídias disponíveis e isso ainda não acontece plenamente, somos muitos, na verdade somos maioria e são as nossas histórias, conflitos, mitologia enfim cultura... que deveria nortear o padrão estético do que é feito no teatro, cinema, tv etc... O público de teatro em Salvador em sua maioria ainda estranha espetáculos como Shirê Obá e Ogum, mas por outra lado há uma gama de espectadores ansiosos e desejosos de montagens como Bença, O dia 14, Silêncio só pra citar alguns, estes espetáculos possuem um elenco majoritariamente negro e abordam temas referentes a afrobrasilidade.

Os diretores que lidam com a temática centrada na cultura africana e afro brasileira geralmente são tidos como radicais, polêmicos, chatos, difíceis. Esse seu viés dentro da cultura africana incomodou gente na Escola de Teatro da UFBA e seu arquétipo obviamente eurocentrado? Por quê?Nada nunca foi claro, tudo sempre sutil, um racismo camuflado por comentários jocosos tipo: Menina monta um texto pronto consagrado construir uma dramaturgia dá muito trabalho... Se formos analisar o conceito de consagrado já já chegaremos as referências aprovadas pela academia. Tive alguns embates, mas fui uma aluna muito estimulada no que tange a defesa de um discurso, pois na Escola neste período que passei lá a maioria dos alunos diretores entram sem um discurso estético e político, muitos descobrem lá, outros terminam o curso e não sabem o que querem dizer com o teatro. Então uma aluna tão jovem e com um discurso tão forte chocava alguns e estimulava outros. Encontrei grandes parceiros que me instigavam a querer mais e melhor, Marfuz, Marcos Barbosa foram decisivos nesta caminhada.

Em OGUM DEUS E HOMEM, seu último espetáculo, os atores passaram por um intenso processo evidenciado no blog da produção. O quanto foi importante fazer estes rituais para que o projeto desse certo?Sou capaz de dizer que se não houvesse esses momentos não haveria espetáculo. Faço um teatro calcado no teatro-físico ritual e não dá pra fazer de conta o ator tem que sentir efetivamente a energia, a atmosfera do candomblé, ouvir os cantos, comer as comidas, ver os Orixás, pra transmutar tudo em arte. Nesse caso tem que subir a montanha pra saber que é alto.

Luiz Marfuz, Fernando Guerreiro, Marcio Meirelles são alguns dos nomes que conseguiram manter o teatro baiano em pé e com qualidade. Mas com o tempo surgem novos talentos. Quem você poderia ressaltar o trabalho como grande promessa do teatro baiano atualmente?Existem figuras que já estão trabalhando já algum tempo e que me inspiram um exemplo é Ângelo Flávio, outro é Thiago Romero agora como promessa para o teatro baiano eu diria Diego Pinheiro um jovem diretor negro que possui um grupo de investigação cênica, é dramaturgo e recentemente ganhou um prêmio de dramaturgia pela Fapex e está atento as novidades do teatro contemporâneo.

Existe, não só em Salvador, uma diferenciação do teatro “comercial” para o teatro “engajado”, “pura arte” e que é aparentemente consumido por pessoas distintas. Você acredita que esta diferenciação distancia o teatro como um produto a ser consumido como o cinema e a TV, por exemplo?Não, acho que há espaço pra tudo. O teatro é mais uma possibilidade de entretenimento disponível para a sociedade. O maior barato é que ele seja diverso. È bom saber que existe o teatro do Bando, o de Marfuz, o de Guerreiro, o meu, o da Cia Baiana de Patifaria, todos muito diferentes, mas ainda assim teatro. A classificação só funciona na academia, na vida real o público quer ver bons espetáculos independentemente de ser engajado ou comercial.

O que você ressalta de bom no conhecimento formulado pela academia para um diretor/ator/profissional de teatro que queira prestar vestibular para a área de artes cênicas e quer seguir a estética da cultura afro brasileira?A academia possibilita o contato direto com a teoria e teóricos que influenciaram o teatro de forma contundente, o fato de se ter contato com a obra de Brecht, Eugênio Barba só pra citar alguns é fabuloso. Mesmo fora da academia você pode conhecer estes teóricos, mas os mecanismos utilizados na academia para a absorção dos conteúdos desses teóricos, as discussões com variados pontos de vista e experiência de diferentes professores estimula entendimento. Algo que você levaria talvez anos pra conhecer e entender sozinho numa pesquisa auto didata, ás vezes a depender do professor você leva um semestre. A quantidade de material disponível o diálogo com um profissional da área que pesquisa este ou aquele teórico e a cima de tudo a reflexão dão a possibilidade de ampliar quantitativamente e qualitativamente a sua percepção. A academia é o lugar privilegiado para o exercício do pensamento, da elucubração, da conjectura. Mas um artista não se forja na academia ele é uma das possibilidades de formação. No que tange a estética da cultura afro brasileira estamos longe de sermos uma presença efetiva. Existe um sistema para nos invisibilizar, é sutil ás vezes sorrateiro, temos que estar atentos Já ouvi de algumas pessoas que o trabalho que faço é catequético no mal sentido, que as pessoas pra conhecerem o candomblé devem ir a uma festa e não ao teatro.
Bom esse tipo de discurso já denota a ignorância e o racismo que muitos expressam quando vêem a nossa cultura colocada no foco. Por isso temos que mais e mais falarmos de nós, dos nossos, sem nenhum pudor, temos que nós mesmos contar a nossa história e impedir que o estrangeiro continue nos estudando e ganhando dinheiro com a nossa cultura. Se alguém tem que falar que sejamos nós mesmos.

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terça-feira, 29 de junho de 2010


Uma Prosadora de Mão Cheia! Entrevista com Cidinha da Silva (PARTE 1)

Ao receber as respostas da entrevista com a escritora Cidinha da Silva tive instantaneamente a mesma sensação da menina que consegue o livro tão sonhado no conto clássico de Clarice Lispector, Felicidade Clandestina. Cidinha me pediu calma semanas atrás para responder as questões que lhe enviei e eu (não muito) calmamente esperei. Estava ansioso por suas respostas, confesso. Cidinha da Silva é prosadora de mão cheia, organizadora de Ações Afirmativas em Educação: experiências brasileiras (Selo Negro Edições, 2003, 3a edição). Co-autora de Racismo e Anti-racismo na Educação: repensando a nossa escola (Selo Negro Edições, 2002, 4a edição)e Racismo no Brasil (Peirópolis, 2002). Tem dois livros de histórias curtas publicados pela Mazza Edições: Cada Tridente em Seu Lugar (2007, 2a edição)e Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor! (2008), além de outros trabalhos. Na entrevista postada abaixo (dividida em duas partes) ela fala sobre o ato de escrever, como se dá a construção de seus textos e também sobre literatura, cinema, outros escritores, racismo, cultura negra e uma infinidade de assuntos... Já li e reli essa entrevista antes de posta-la, descobri universos, aprendi muito a cada linha escrita. Ler Cidinha da Silva é sempre um aprendizado. Aproveite.
  1. A literatura tornou-se um caminho para expor suas idéias a partir de que ponto na sua vida? E o porquê escolheu a prosa como o seu caminho na escrita?
Eu comecei a publicar literatura em 2006, 1a edição do Tridente, aos 39 anos. Minha paixão pela leitura e pela escrita, entretanto, teve início quando comecei a ler, aos 5 anos. Os quadrinhos foram a primeira descoberta e mesclaram-se (continuam a se mesclar) com diferentes livros e autores ao longo da vida. Eu me sinto fluida, feliz e confortável ao escrever prosa. Os poemas doem muito, prefiro lê-los. Aliados à dor que me afasta (tenho pouca resistência para sofrer ao escrever), faltam-me talento poético e técnica para criar poemas. Ao contrário do que muita gente professa por aí, escrever um poema é algo dificílimo. Lapidar a palavra até alcançar a precisão da expressão não é para muitos. Tenho me contentado em pescar a poesia da vida vivida para a minha prosa.
  1. Existe muita informação vinculada no Brasil que o próprio Brasil não lê, não se mostra interessado pela literatura, por um arsenal de motivos, mas o principal que geralmente citam são os altos preços das publicações. Como autora de livros infantis, crônicas, além de volumes ligados a área da Educação, como você enxerga a relação da literatura com o brasileiro?
Antes de qualquer coisa é preciso investir na formação de público-leitor. Diversos são os fatores que dificultam a promoção da leitura, o gosto pela literatura, e são anteriores ao preço elevado dos livros. Vejamos: inexiste, no Brasil, uma cultura de valorização do livro, do(a) leitor(a), do conhecimento e do prazer de ler. Falta incentivo ao contato das pessoas não intelectualizadas com o objeto-livro, principalmente por parte das elites intelectuais e dirigentes, que seguem, ao longo de séculos, tratando o livro como um bem destinado a um grupo de pessoas eleitas. O número de bibliotecas públicas nas cidades, com programas massivos e atraentes para convidar as pessoas a freqüenta-las é insuficiente. Não existe também um número satisfatório de bibliotecas nas escolas públicas, quando existem, possuem acervos ultrapassados e pouco dinâmicos no sentido de fomentar a circulação de livros. Graça o desestímulo à leitura na maior parte do ensino de Português e Literatura nas escolas públicas brasileiras, no qual se privilegia aquilo que supostamente “o autor quer dizer” e que o professor (onisciente) sabe o que é, restando ao pobre estudante encontrar “as respostas certas” no processo de interpretação de texto, que, por si só, deveria ser algo subjetivo e pessoal. Por fim, o preço dos livros de literatura no Brasil não é competitivo comparado a outras opções de entretenimento. O alto preço das obras é definido por fatores agregados, tais como: baixa tiragem de cada edição, circulação lenta dos livros na venda a varejo (em livrarias e similares) e ausência de uma política de popularização e valorização da leitura.
3. Nos últimos anos a literatura infantil no Brasil teve uma grande mudança com a chegada de vários exemplares com histórias envolvendo a temática da cultura afro brasileira e africana sem estereótipos. O curioso é observar dois movimentos que se vê na compra desses exemplares; o adulto que compra o livro para a criança (público alvo) e adultos que compram os livros para si mesmos. Para você, escritora também de uma novela juvenil, qual o impacto que esta nova literatura negra tem sobre adultos e crianças negras?
Houve mudanças pontuais e simbólicas, discordo que tenha sido algo grande. A inflexão de impacto na literatura infantil e juvenil no Brasil, de maneira global, ainda está circunscrita aos anos 70 e 80, com a geração dos grandes escritores e escritoras do gênero que vieram após Lobato, a saber, Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga e Bartolomeu Campos Queiroz, para citar alguns. No que concerne aos escritores negros, no gênero, temos o precursor e largamente premiado Joel Rufino dos Santos, Geny Guimarães com os belos e premiados “A cor da ternura” e “Leite de peito” e contemporaneamente, Heloísa Pires Lima, que vem fazendo um trabalho muito consistente, principalmente movido pelo diálogo com culturas africanas, além de Edimilson de Almeida Pereira, autor de “Os reizinhos de Congo”, “Histórias trazidas por um cavalo-marinho” e “Rua Luanda”, dentre inúmeras outras publicações. Um autor que admiro muitíssimo, cuja produção literária me ensina muito. Dentre a vasta obra da octogenária e ativa Ruth Guimarães, dedicada à cultura popular do interior de São Paulo, há vários títulos que também podem ser lidos e desfrutados pelo público infanto-juvenil, embora ela não se defina como uma escritora do gênero. Em que pese não ser especialista no tema, arrisco dizer que ainda somos poucos escritores e escritoras negros com trabalho consistente no campo da chamada literatura infanto-juvenil. Pululam livros de afirmação da identidade negra e também os de auto-ajuda para crianças negras (sem esquecer que existem os de auto-ajuda para crianças brancas, nos quais o “inimigo” pode ser o “pivete”, o “trombadinha”, o morador de favela ou de rua, o bom de bola delinqüente e perigoso, invariavelmente representados por personagens negras). Livros em que, o mais das vezes, a tal “mensagem para a criança” sobrepuja qualquer lampejo de criação literária. Mas, não sejamos mais realistas do que o rei, existe espaço no mercado editorial e em nossos combalidos corações para essa produção. Eu mesma sou uma compradora contumaz de livros em que personagens negras tenham destaque na trama, em que apareçam na capa ou quarta capa em posições dignas... compro, leio, faço a triagem, vejo o que serve para presentear os pequenos da minha vida, os que servirão como referências boas ou ruins para minhas aulas e textos, e aqueles que lerei duas, três vezes, por prazer ou para estudá-los. Penso que essa produção de prosa afirmativa da identidade negra, por parte de autores e autoras negros é que abunda, mais do que uma produção literária, propriamente. Por outro lado, há autores não-negros com trabalhos respeitáveis de literatura dialógica com matrizes afro-brasileiras e/ou africanas, neste campo destaco Rogério Andrade Barbosa (com altos e baixos) Lia Zatz e Carolina Cunha. Esta última, devo confessar, não consigo saber se é negra ou não, pois não há referências quanto ao seu pertencimento racial no catálogo ou no sítio da editora (SM Edições). Não há fotografias nos livros e nunca encontrei imagens confiáveis na Internet, é uma incógnita. Encontrei apenas uma definição de que é “baiana de Salvador e desde menina é atraída pelos mistérios dos encantos africanos, por isso se tornou pesquisadora de línguas e artes africanas no Brasil”. O trabalho literário, o que mais importa, é de excelente qualidade e as ilustrações também são belíssimas, feitas por ela. A grande novidade, ainda tímida, me parece ser a entrada de escritores negro-africanos no mercado editorial brasileiro: desde o poderoso angolano Ondjaki, que conta com o lastro marketeiro de uma das maiores editoras do país para sua literatura de incontestável qualidade a autores bem menos conhecidos, mas com um trabalho muito bom, tais como: Adwoa Badoe e Meshack Asare, de Gana, Mamadou Diallo, do Senegal e Sunny, da Nigéria, dentre outros.
4. Você tem cinco livros publicados. Como se deu processo de construção deles? É algo que vai acontecendo de forma livre ou obedece um caminho seguro, regras/padrões/prazos, como prefere fazer alguns autores?
Tenho quatro livros publicado, três de literatura e um de ensaios. O quinto livro está pronto, mas ainda inédito. Segue o processo de garimpar editoras e participar de concursos, é também um infanto-juvenil. Normalmente sou uma pessoa organizada para trabalhar, o desenho e organização dos processos é importante para mim, mesmo que vá mudando muita coisa pelo caminho. Gosto de escrever pelas manhãs, meu horário mais produtivo para a vida. Quanto a prazos, depende da demanda, tanto da minha demanda particular, interno-afetiva com o texto em tela, quanto da demanda externa. Um bom exemplo é quando tenho prazo para entregar o trabalho a uma editora ou para inscrever o livro em um concurso. Os prazos e a organização não me atrapalham, ao contrário, me ajudam.
  1. O que muda em Cidinha da Silva a cada livro escrito e publicado?
Creio que são as mudanças trazidas pelas coisas boas que acontecem na vida: às vezes são surpreendentes, outras são presentes esperados e merecidos, às vezes são avatares de alegria, de melhores tempos... um livro escrito e publicado é invariavelmente uma coisa boa e as coisas boas nos tornam seres humanos melhores.

Entrevista com Cidinha da Silva (PARTE 2)

6. Você além de muitos afazeres também é blogueira, pelo que vi ao contrário de muitos blogs por ai, você posta com certa freqüência nele sobre cultura negra, literatura, quadrinhos e sua vida profissional também. Vi pelas postagens que sente às vezes vontade de desistir e tem vezes que parece estar animada escrevendo-as. O que a motivou usar esta ferramenta virtual?
Iniciei o blogue pouco depois de começar a publicar literatura e tinha o objetivo primeiro de dialogar com meu público, de atingir a um público maior e de ocupar uma fatia de espaço virtual pouco ocupado por escritores e escritoras negros brasileiros. Nunca pensei no blogue como um espaço para produzir literatura, vejo-o muito mais como um espaço de expressão política por meio da arte que acredito e gosto. Às vezes oscilo quanto à continuidade dele porque tenho menos tempo para escrever do que gostaria, isso às vezes me frustra muito. Gostaria de postar mais textos autorais do que notícias, de ter tempo para comentar as notícias e desenvolver minhas reflexões.
  1. Foi através do seu blog também que acabei sabendo que obras suas estarão em breve em versões cinematográficas. Instantaneamente lembrei filmes como A Cor Púrpura, que foi odiado inicialmente pela autora Alice Walker até ela, anos depois, compreender que seu livro tinha virado outro produto e também de Paulo Lins cujo seu Cidade de Deus foi reinventado nos cinemas. Quais são as expectativas e medos em relação à sétima arte inspirada na sua literatura?
Primeiro é importante dizer que algumas obras minhas estão em processo de adaptação como curtas de ficção, nada de telona, por enquanto. Segundo, fico muito animada, sempre, porque acho o cinema um grande barato. O Joel Zito Araújo, amigo querido e cineasta que respeito muito, disse certa vez que tenho textos muito “fílmicos”. Pelo que entendi do comentário dele, são textos que se prestam bem ao cinema. Outro amigo querido, o poeta Ricardo Aleixo menciona a agilidade da minha escrita, o que também está relacionado à imagem, não é? Então, esse “coqueteio” com o cinema é algo que me alegra muito. Por fim, pelo menos de forma racional, separo a obra literária das outras expressões artísticas que ela inspira. Mas gostaria muito que meu texto fosse para o teatro, por exemplo, assim como o texto de Marcelino Freire tem ido, ou seja, de maneira integral, sem cacos, sem xistes de ator, sem acréscimos ou cortes na palavra minha. Que a arte do ator apareça pela interpretação do meu texto que se manteria integral, intacto, isso é um sonho de consumo. Neste momento, a Iléa Ferraz, ilustradora do Pentes e também atriz de sucesso, está montando um espetáculo a partir dos textos do livro “Os nove pentes d’África”, com estréia prevista para agosto, no espaço Tom Jobim, aqui do Rio de Janeiro. Vi uma prévia no lançamento do Pentes, realizado em março deste ano, no Centro Afro-carioca de Cinema, também no Rio. Trata-se de uma criação de dramaturgia, música e de expressão corporal a partir do texto, escrito por mim e das imagens dos pentes desenhados por ela, mas ali não estará o texto “Os nove pentes d’África” em sua integralidade. É uma possibilidade interessante, exige um desapego afro-zen. Estou empenhada em abrir o coração para as novas obras que nasçam a partir da minha. Entretanto, há uma coisa que me irrita, é quando atores ou performers dão ao meu texto uma corporeidade espalhafatosa que meu texto não proporciona. Por mais que a pessoa viaje, não cabem efeitos exagerados em um texto econômico como o Pentes, por exemplo. Já aconteceu algo assim e fiquei bastante frustrada. Senti como se a atriz pusesse meu
texto no chão e descarregasse um pente de tiros de metralhadora sobre ele. Pareceu-me uma performance pronta (e talvez eficaz em outros contextos) encaixada no meu pobre texto.
  1. Você é graduada em historia pela UFMG. Só que virou escritora de renome no cenário da literatura negra nacional. Existe lugar para a historiadora Cidinha quando a escritora entra em ação? A historia que estudou na universidade influencia de alguma forma as historias que conta como escritora?
Sua pergunta tem várias partes. Para início de conversa não me vejo como uma escritora de renome em qualquer cenário, agradeço sua manifestação de carinho e apreço por mim e por meu trabalho. Sou uma escritora séria, dedicada, uma pessoa que lê muito, inclusive para enfrentar suas inúmeras lacunas de conhecimento, que estuda para conhecer novas técnicas de escritura e apurar as que tem, além de escrever e reescrever todo o tempo que minha vida de operária do intelecto (de onde vem meu sustento) permite. Eu tenho verve de pesquisadora e isso me acompanha em todas as atividades, não a pesquisa acadêmica, mas a pesquisa movida pela curiosidade de conhecer, pela necessidade de desenhar a planta baixa de uma obra literária, pela necessidade de melhor construir um projeto artístico. Relendo meus primeiros textos, os publicados e principalmente os que não publiquei, seja pelo meu próprio discernimento, seja por sugestão de outrem, percebo que, mais do que a historiadora, a ativista me tolhia. Hoje estou um pouco mais solta, mas às vezes ainda sou lembrada (por mim mesma ou por leitores críticos) de que a ativista deve se recolher quando estou escrevendo literatura. Como disse Nadine Gordimer ao comentar sua produção literária e a luta inescapável contra o racismo na África do Sul dos tempos terríveis do Apartheid, “estamos discutindo assuntos importantes. Agora vamos deixar de falar sobre eles para que eu possa voltar à questão de escrever sobre eles”.
  1. Vi criticas, sempre muito positivas, sobre seus livros, principalmente “Você me deixe, viu?Eu vou bater meu tambor!”. Na maioria delas, evocam um lado profundo, de uma literatura engajada, feminista, quase uma pretensa responsabilidade sua em escrever literatura negra feminina, pois é autora negra. Eu achei sua linguagem muito simples, temas como sexualidade, amor, relações entre homens e mulheres soltam para o leitor de forma despretensiosa. Você se sente cobrada em escrever literatura negra sobre mulheres, pois é uma autora negra? Como lida com as criticas positivas e já recebeu alguma negativa, já que não encontrei nenhuma?
Primeiro vou comentar o preâmbulo para depois responder às perguntas. Você é um afortunado, eu tenho menos acesso às críticas do que você. Nós, no Brasil, inclusive na Universidade, somos pouco críticos, não é? A crítica é tomada como algo pessoal (às vezes o é, de fato) e as pessoas têm medo de ganhar inimigos ao criticar um trabalho. Confesso que vez ou outra, eu mesma tenho medo de criticar, principalmente trabalhos de amigos. Creio que tendo a lidar bem com a crítica séria e fundamentada, mas se forem coisas destruidoras, maldosas ou burras, convoco a dupla dinâmica das estradas e vamos buscar caminhos. Sim, minha linguagem pretende ser simples. Quero alcançar as pessoas, quero ser lida. Além da simplicidade, busco a economia textual, pois sou prolixa e não quero que meu texto o seja. Sim, me sinto cobrada, apenas por homens que pensam saber o que uma prosadora negra deveria produzir em terras tupiniquins. Em geral, eu ouço as sugestões deles, atenta e muda, mas elas entram por uma orelha e saem pela outra, não esquentam lugar no meu cocoruto.
  1. Vi que o livro Cada Tridente em Seu Lugar foi lançado também em formato e-book. Mas muitos autores atualmente publicam somente na web seus escritos, às vezes por conta que não possuem editores ou até por gosto mesmo dessa nova ferramenta. Está em seus planos publicar algo somente no mundo virtual?
O Tridente será lançado como livro eletrônico, em breve. Estou muito contente porque a editora escolheu três autores para abrir esse caminho e eu estou entre eles. Tenho planos de publicar uma obra virtual, sim. Será um trabalho embasado pelo Pentes e em conversas sobre literatura, especificamente sobre a minha produção literária, desenvolvidas com pessoas diversas em comunidades de favela e periféricas da cidade do Rio de Janeiro.
  1. Para Cidinha da Silva ser escritora negra no Brasil, um país com racismo velado, é...
Uai, racismo velado onde, cara pálida? O racismo aqui é virulento - em que pese não haver racismo brando em lugar algum, é só para contrapor o suposto disfarce - e escancarado. Mata, obstrui e aniquila. Eu sou uma mulher negra aqui e em qualquer lugar do mundo. Mais do que uma escritora negra sou uma negra escritora, tal como seria uma negra médica, gari, cozinheira, professora universitária. Ser negra é nome. É substantivo, principalmente em sociedades racistas e racializadas como a brasileira.

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sexta-feira, 14 de maio de 2010


UMA BLACK DIVA DE RESPONSA!!!

Assistir um show de Valerie O'Rarah é sempre presenciar uma apresentação fora do comum. Criada há seis anos pelo ator transformista Valécio dos Santos, Valerie tornou-se figura mais que querida na comunidade homossexual de Salvador. Em pouco tempo sua personagem tornou-se definitivamente diva. Em entrevista ao Blog Película Negra conversamos sobre a Cena LGBT de Salvador, a arte do Transformismo e claro, o uso da cultura negra em suas apresentações, já que em Valerie isto é um diferencial, um ótimo diferencial...

Como foi que surgiu a Valerie? Como foi o seu processo de criar e desenvolver uma das maiores personagens da cena LGBT soteropolitana atual? Quando nasceu a personagem há seis anos atrás, chamava-se Valentini O’rarah, e nasceu em casa aos domingos com um grupo de amigos que fazíamos reuniões dominicais bem divertidas e em uma dessas surgiu a personagem um tempo depois achava que o nome não era muito sonoro Valentini e substitui para Valerie O’rarah, que hoje segue uma linha afro pop brasileira de personalidade forte.*

2 Além de brilhar nos palcos no circuito LGBT de Salvador, você tem outra profissão? Sim, sou maquiador profissional, trabalho com make social e artística... no trabalho social o comum como noivas, formandos entre outros e artísticas com peças teatros, vt’s e filmes, além de lecionar o oficio a uma ONG chamada Omi-Dudu.*

3 A carreira de ator transformista Salvador tem sofrido um abafamento nos últimos anos. Aqui na cidade, poucos lugares dão espaço para a arte do transformismo, além dos cachês que são muitos baixos. Com toda essa dificuldade o que te move investir em algo tão caro e trabalhoso de se fazer? O PRAZER, todo artista tem seu ego acima de qualquer coisa. Se um artista for pra casa sem o aplauso do seu publico e com um cachê maravilhoso no bolso, ele fica insatisfeito, mas mesmo estando sem dinheiro porém, com o reconhecimento de seus seguidores, seu publico, seus fãs... nossa, é a gloria pra qualquer um artista.*

4 Em São Paulo e no Rio, por exemplo, as drags e atores transformistas estão migrando para o teatro depois que algumas boates se fecharam para seus shows. Aqui em Salvador a peça Loulou Atende também esteve em cartaz no Teatro Gamboa. Você pensa em migrar para os teatros, em exibir seu trabalho em outros lugares? SIM, tanto penso positivo como já fiz alguns trabalhos no teatro... fiz Salto Alto de Diorgenes Costa com a Direção de Guido Velansque, no Meia noite se improvisa ano passado fiz um trecho de Divorciadas, Evangélicas e Vegetarianas com a Direção de Iara Colin, lançamos um show em 2007 Star’s junto com Rainha Loulou e Suzzy D’Costa no teatro Gamboa e para 2010 tenho porjetos em lançar um novo show ligado aos orixás.*

5 Você em suas apresentações, vez por outra, adere à estética afro brasileira e africana. Em muitos shows a Valerie se diferencia das outras artistas por conta disso. Você usa perucas black, interpreta deusas negras do samba, usa roupas que usam características da cultura afro brasileira. Como surgiu o interesse em levar aos palcos a cultura negra através do transformismo?
Como Valécio, observei que a maioria dos transformistas em Salvador tem uma preocupação em ser a mulher branca bonita e se eu fosse fazer o mesmo papel estaria no grupo de mais uma. O engraçado que estamos em Salvador uma cidade negra e que poucos trazem a cultura negra na versão transformismo. Parei, pensei e executei e acho que deu certo! rs *

6 O Brasil é conhecido como país de racismo velado. Os negros geralmente sofrem racismo, mas de uma forma bem diferente das vistas em países como EUA, por exemplo. E para você, artista da cena homossexual em Salvador, existe racismo no meio LGBT? Nunca presenciei uma cena de racismos nos palcos em que pisei.*

7 Quem são as suas referencias artistas que você admira – cantoras, divas, atores transformistas?
Vixi, tenho muitos espelhos... cantoras são: Whitney Houston e Beyoncé (internacional)... Maria Bethania, Alcione, Daniela Mercury e Mariene de Castro (nacional)... Hebe Camargo e todo o seu carinho com o publico e seus convidados sem falar da elegância da mulher e atrz Fernanda Montenegro*

8 O show de transformismo, atualmente, se realiza por meio de uma combinação de técnicas que se dividem em três categorias: a dublagem (ou outra técnica artística possível), a performance e a produção visual. Sem estes três quesitos não há show, ou existem outras técnicas que vão além destes componentes básicos? Sim... o necessário, para uma boa apresentação. Dublagem em cima da letra, desempenho no palco e a produção q encanta os olhos. *

9 O mundo artístico é conhecido por sua concorrência acirrada, muitas vezes até desleal. Acabei visitando sites, blogs de artistas transformistas, drags, artistas travestis de todo Brasil e vi que existe muito bafafá, quem teve o melhor desempenho no palco, quem se apresentou com o pior vestido, muita treta, fuxico etc. Nos bastidores em Salvador também rolam estes burburinhos? Sim, muita critica desnecessária, muita picuinha, fofocas e outros. Cabe a cada um executar seu trabalho e ponto.*

10 Nestes seis anos de carreira você deve ter muitas historias para contar... Pode compartilhar um momento inesquecível e outro que infelizmente insiste em ficar na memória nestes anos nos palcos?
Foram tantos cravados na minha memória, muitos de aceitação popular, as vitorias nos concursos, a emoção das musicas que falam de amor e vc chega na historia de alguém que esta lhe assistindo isso é muito bom e os aplausos que alimenta a alma do artista.*

11 O que alguém que quer se enveredar pelo caminho da arte do transformismo pode dar os primeiros passos aqui em Salvador?
Como toda profissão tem que ter aptidão, e pra alguns só descobrem isso nos palcos, a ajuda de alguém que esta a mais tempo na estrada é um bom começo também e o principal... pra ser artista tem que ser artista.

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quarta-feira, 24 de março de 2010


UMA VOZ ABENÇOADA.

Ed Shomer (ao lado) é um homem multiuso. Extremamente compromissado com seu trabalho e a arte negra ele é Cantor e Pesquisador da Música Afro-Brasileira e Afro-Americana e Diretor Musical do 1º Coral Afro de Alagoinhas. Aos 30 anos, esse alagoinhense além de se envolver com música, está envolto na política como Diretor de Combate as Opressões e Ação Social – SINPA e também é Editor e Colunista do Jornal Axé Bahia - Agreste de Alagoinhas / Litoral Norte Em entrevista ao PELÍCULA NEGRA ele fala sobre o sucesso do coral, da carreira, do gosto pela musica, arte em geral e outros assuntos urgentes...





Como a música apareceu na sua vida?
Na minha primeira eucaristia aos 10 anos de idade. Eu solei uma parte de uma das músicas da cerimônia, as pessoas levantaram pra me aplaudir e aquilo me marcou, me emocionou muito. De lá pra cá não parei mais.
Suas referencias musicais quais são? Você é fã de Brian Mcknight, não é mesmo?

Meu timbre sempre foi uma mistura do forte e melódico, isso fez com que eu me interessasse em ouvir pessoas que cantassem parecido comigo pra que eu pudesse ir comparando e vendo onde eu podia melhorar. Minha referência até a adolescência era apenas o gospel e com o tempo fui descobrindo que a música feita por pretos, principalmente os norte americanos, me fazia alcançar níveis mais altos de inspiração para interpretação. Passei a ouvir de tudo que se referia a música negra norte - americana (soul, jazz, blues, funk norte americano, R & B, etc). Depois de um tempo estendi ao que era feito em outras partes como reggae e o samba brasileiro e nisso fui tendo noção do que eu era capaz de fazer. Essa mistura fez com que eu me abrisse para outros estilos (de igual modo feito por negros) e hoje ouço desde as primeiras que citei até o samba – reggae e o afro pop (estilo batizado recentemente pela grande Margareth Menezes).
Sim, adoro o Brian. Tenho a discografia completa! (risos).
E o coral afro, a partir de que surgiu a idéia de fazer um coral com esse enfoque?

Eu sou Baba Alagbè (título dado no terreiro em que sou iniciado a quem é o principal responsável em cantar e dirigir os demais Alagbés na entoação das cantigas nas festas, ritos e cerimônias) e em 2008 surgiu a necessidade de se estender o xirê especial ao Orixá Iroko. Minha Yalorixá então pediu que eu reunisse os outros ogãs e ekedjis para que ficasse uma “coisa de peso” (palavras de Mãe Olga - risos). Como já fui diretor musical de alguns projetos não foi difícil encontrar algumas coisas boas vindas de Nigéria, Cuba e principalmente de nossa tradição Yorubá. Me reuní com o pessoal e cara, ficou muito bom! No dia da festa só via a turma elogiar o trabalho.
Chamamos a atenção do poder público e fomos convidados a cantar de novo. Foi aí que tudo começou.

Essa vontade de construir um coral afro foi influenciada na sua entrada no candomblé, já que é uma religião que lida com uma forma de musicalidade diferente e também uma cultura díspar da dita como oficial.
Como eu disse, foi exclusivamente por isso. Apesar de ser conhecido como conservador, o desafio me atrai. É um grande desafio fazer com que as pessoas parem pra ouvir músicas que não estão acostumadas ou está fora da mídia, principalmente quando se é música de preto e preto do candomblé.
A visão sobre cultura afro brasileira e africana fez com que você tenha uma opinião diferente da música como um todo?

Não. Pra mim a música em si tem uma força tão grande que transcende qualquer cultura ou religião. Ela tem vida própria entende? Eu já tinha essa opinião e só se confirmou.
Como está sendo a receptividade do coral?

Nos apresentamos poucas vezes fora das casas de axé. Mas quando nos apresentamos conquistamos e os integrantes foram entrevistados (risos). É tudo muito novo, ainda não temos a estrutura necessária para uma “explosão”, mas estamos trabalhando pra isso.
Reparei que Alagoinhas tem um “mercado musical” próprio. Com bandas e artistas que circulam pelas cidades que fazem divisa com ela e também pela região de Feira de Santana. Para você como anda esse mercado da música no interior?

Temos grandes artistas, isso é fato. Mas a música, assim como as demais vertentes da arte que é feita no interior ainda é muito desvalorizada e excluída. Pra você ter uma idéia, a maioria dos artistas de Alagoinhas e Região que são reconhecidos de alguma forma hoje, primeiro tiveram que mostrar seu trabalho em Salvador e em outros estados. E não é porque a turma não tem qualidade, porque tem. É porque os contatos que podem notar essa qualidade e proporcionar uma ascensão está na capital. Acho que o poder público deveria ajudar nesse processo, proporcionando um alcance maior de seus editais ao interior, tanto na divulgação eficaz quanto na “fatia do bolo”.
Essa semana fui dar uma palestra sobre Música e Cultura Negra e lá também estava minha irmã de fé e grande amiga Fernanda Júlia (Diretora Teatral de um talento espetacular) que também é de Alagoinhas. Depois de palestrarmos tivemos tempo de colocarmos o papo em dias e um dos assuntos em pauta foi justamente esse. É uma opinião geral: temos grandes artistas e pouca valorização no interior.
Nos EUA há uma tradição de musicalidade negra que tomou conta do mundo desde o século passado. Aqui no Brasil também existe uma tradição de música negra, desde Jorge Ben, Margareth Menezes, a Paula Lima, mas vemos que esses artistas não fazem tanto sucesso quantos outros... Por exemplo, Daniela Mercury, Ivete Sangalo... A cor da pele é um fator importante para o sucesso ou não de determinado artista?

Eu estou tentando lembrar de um único artista negro brasileiro que seja uma celebridade com a mesma popularidade das artistas brancas que você citou agora e não estou conseguindo. Tem o Carlinhos Brown que arrasta multidões na Bahia, o Djavan que lota casas de espetáculo famosas e outros artistas que podem ser considerados monstros sagrados da arte brasileira, mas pra lotar um estádio de futebol como o Maracanã, deixa eu ver... não, não estou conseguindo lembrar. Mas, talvez seja só coincidência.
O racismo aqui no Brasil é conhecido por se manter de forma velada. Como é isso para você negro, musico, sacerdote...

Vedada e cínica! Outro dia me disseram mais uma vez que o racismo está na cabeça de nós negros, que racismo não existe. O racismo é real, o pré-conceito pela cor da pele existe e está no meio da arte também. Meu povo sofre na pele a intolerância por integrar uma religião de negros, que desde a chegada dos nossos antepassados aqui no Brasil sofre uma tentativa de sufocamento quando “demonizam” tudo que nos pertence. Li um comentário sobre uma famosa cantora brasileira outro dia quando diziam pejorativamente: “aquela macumbeira até que canta bem”.
Na hora da televisão parece que tudo é perfeito, mas aqui em baixo, na vida real e cotidiana vejo sim a diferença no tratamento a artistas negros. Aqui na Bahia somos maioria e veja quantos de nós estamos na mídia. Somos centenas de negros e negras fazendo arte de qualidade, mas são poucos os que conseguem um destaque tal como outros não negros. Agradeço ao universo pela vida do Lázaro Ramos, Margareth Menezes, Sandra de Sá e tantos outros que conseguiram, mas a verdade tem que ser dita.

Você se envolveu no moimento negro, participou do CEN, fundou junto com outros amigos o JUNA também trabalha na Prefeitura de Alagoinhas. A política e a arte negra sempre andaram juntas ou são coisas que precisam andar separadas para se desenvolverem?

Eu ainda sou filiado ao Coletivo de Entidades Negras, mas não me chamam pra fazer muitas coisas por lá (risos). Adoro o pessoal e acho que é um dos movimentos com maior representatividade no que concerne a militância negra. A JUNA foi uma tentativa de fazer com que jovens das comunidades periféricas de Alagoinhas e Região tivessem melhores oportunidades. Eu saí da liderança 2008 e não ouço mais falar neles enquanto grupo, mas individualmente tenho uma boa relação com todos e sim, sou um servidor municipal e músico (nunca deixo de mencionar).
E justamente por ser músico eu vejo que a arte e a política precisam ser parceiras, mas independentes uma da outra. Se eu vivo da música, não posso chegar ao cara que está no poder e dizer a ele que não vou cantar (e fazer o meu melhor) em um evento organizado por sua equipe. Eu não pensava assim, hoje eu penso. E não é porque eu não tenho um lado ou não deseje o melhor pra meu povo, é porque com a idade a gente vê que temos que escolher nossas prioridades e definir quais valores em nossas vidas deverão falar mais alto, com o desafio de nunca, jamais se vender. Como negro sinto prazer em militar pelas causas que corroboram com a equiparação humana. Como músico ganho vida quando dou alívio às almas dos seres humanos com minha voz.

Como ultima pergunta: Qual a sua visão de musicalidade negra atual e como enxerga essa vertente musical daqui a alguns anos?
Nossa música é forte, emociona, encanta e alegra. Nossas vozes são marcantes e nossos ritmos tomam conta do corpo. Essas coisas como digo, falam mais do que as dificuldades que encontramos pra vivermos da arte. Tanto no Brasil como em todo o continente americano temos crescido e isso não vai parar. O mercado está se saturando de “mauricinhos” e “patricinhas” nas telas, e o diferente faz-se necessário. Espero que os governos se abram mais e mais para a equiparação social e cultural contribuindo com isso para um fortalecimento da arte negra e regional como um todo.

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quarta-feira, 9 de setembro de 2009


Destaque Para a Pele Negra.

Como disse anteriormente, mexi um pouco aqui no Blog Percorro agora novos caminhos ampliando o sentido de mídia negra... de arte negra... E para começar nesta nova estrada conversamos com o fotógrafo Saulo Salles (ao lado), sobre o seu ofício, suas visões sobre o mercado e arte negra em Salvador e também sobre “Peles Pretas” seu último trabalho, que já foi exposto também em São Paulo e tem dado bons frutos para este fotografo mais que talentoso e inteiramente compromissado com o seu trabalho.

Película Negra – Começando pelo começo... Quando iniciou o interesse pela fotografia e por que logo ela e não uma outra arte visual?...
Saulo Salles – O meu pai já era fotógrafo e de modo geral e involuntário tenho a tendência natural de copiar as suas ações। Acho a fotografia um tipo de arte menos autentica, porque em geral, ela por si só, não faz arte e sim retrata realidade. E criar arte da realidade é o q me fascinou.
Película Negra – Existem fotógrafos que em seus trabalhos pretendem evidenciar a realidade através do mundo visto pela fotografia। Mostram o que existe de belo e triste em camadas diferentes da sociedade através das fotos. No “mundo” construído pelas lentes de Saulo Salles o que o público pode esperar?...
S।S – Beleza por onde sempre passaram e nunca notaram, pelo menos é esta a minha pretensão.
Película Negra – Reparei dois pontos curiosos em alguns de seus trabalhos। A primeira é o uso de modelos negros e a segunda o uso do preto e branco. Só vi até agora uma fotografia colorida. O porquê dessas duas escolhas? Elas se completam de alguma forma?
S.S – Eu comecei a estudar fotografia em Florença na Toscana, a beleza e as cores daquela região italiana são intraduzíveis, e acho que nada teria o mesmo sentido sem elas. Já em Peles Pretas, o preto ( cor e raça ) é a “bola da vez”. E o meu exagero de contrastes é justificado pela proposta do trabalho q é a valorização da beleza negra, nada mais aqui deve ter destaque se não a pele dos modelos. Não teria esse mesmo efeito em cores. Quero o preto e não o marrom ou qualquer outra cor dessa mesma variável।
Película Negra – Hoje na mídia em geral há uma valorização maior e também a problematização das questões que norteiam a negritude। A identidade negra, sua cultura, religião vem sendo reformuladas a cada momento. Você se considera de alguma forma, com seu trabalho, também repensando a visão do povo e da cultura negra em geral?
S।S – Sim. E um sim bem grande rsrs. PELES PRETAS propõe uma releitura de padrões de beleza e de conceitos em relação aos afro-descendentes, já que, até o início do século, os objetos das fotos desta exposição não eram ou não podiam ser vistos como belos.O projeto faz referencia ao aspecto ETNICO para designar a presença das varias etnias negras que formam o povo brasileiro, e evidencia a necessidade de ações proativas para a comunidade negra, em particular, atividades de ampliação de auto-estima, valorização e preservação das tradições culturais negras.
Película Negra – Tem alguma técnica especifica que desenvolve para o seu trabalho?
S।S – Sim, mas isso eu não conto.
Película Negra – Poderia citar algumas das suas referências como fotógrafo e o que elas te ensinaram para dar um “up” na sua técnica no modo como encara a fotografia?
S।S – Admiro muitos fotógrafos, os portugueses principalmente. Tenho amigos-ídolos em Portugal, adoro isso. Nenhum deles, porem, me ajudou na definição de minha técnica, cheguei a ela a muito pouco tempo e ao improviso. As minhas primeiras fotos de “peles” não têm a mesma cara das ultimas, isso graças ao “acidente”.
Película Negra – Dá para viver de fotografia em Salvador? Existe mercado para este tipo de arte visual na cidade? Por quê?
S।S – O mercado de arte é pequeno em Salvador como um todo, fotografia ainda mais. Viver de fotografia de arte é pra poucos. Mas quem faz essa opção deve está atento a ações culturais antes de tentar vender. Vender fotos é uma decisão q só pode ser tomada na hora certa, se for antes do ponto, vc tá fadado ao fracasso e se for depois quer dizer q o fracasso já chegou a vc. O fotógrafo precisa de um bom produtor ou ser um bom produtor.
Película Negra – Para você quais os prós e os contras do “bum” que a fotografia teve com as câmeras digitais?
S।S – Eu acho q ficou mais prática, e mais fácil a ação de fotografar. Sou da teoria da constante evolução. Não vejo contras nisso.
Película Negra – O que falta para a fotografia tornar-se uma arte mais consumida, mais valorizada pelo público। Digo valorização fora do senso comum. Que seja apreciada como arte. Ou já existe esta valorização?
S.S – O mesmo q falta às outras artes, educação da população. Não acho q a musica de qualidade seja apreciada pela maioria, ou o cinema realmente bom, por exemplo। Chamamos filmes horríveis de
filmes de terror, e há quem acredita q vê Cinema, vendo aquilo. Assim é também na fotografia. Realmente não acho q as pessoas compram revistas pornográficas para lerem seus textos. As pessoas compram fotos porque somos todos muito visuais. Se não fosse assim, as revistas teriam textos em suas capas. O q falta é cultura de arte visual e cultura geral.
Película Negra – E como anda a repercussão do seu trabalho a partir do público? Você também já fez exposições fora da Bahia। Fale um pouco dessa experiência.
S.S – Isso é algo que seu próprio público vai poder responder ao ver minhas fotos. Já minha mostra em São Paulo foi discreta, em um local bacana, o Espaço Cultural Juca Chaves na João Cachoeira, Itaim Bibi, como todas as anteriores, nunca fiz grandes alardes ou gastos excessivos com publicidade, acho q não é o momento, tenho apenas 4 anos de fotografia e menos de 2 em Peles Pretas।
Película Negra – Como hoje alguém que quer se enveredar pelo mundo da fotografia pode dar os primeiros passos aqui em Salvador?
S.S – Primeiro passo em minha opinião é fotografar varias coisas diferentes e só depois perceber o q vc fotografa melhor, passar para o processo de descarte, sabe?. Vc pode ter variações de gênero fotográfico, mas ter uma base de referencia profissional é fundamental para um artista. Acho importante fazer um curso, e estudar a arte, por que não se deve fundamentar algo em pura intuição. Definir uma técnica própria, ou copiar uma técnica e por características suas é fundamental para não ser mais um no mercado. E por fim, o mais importante, TER UM BOM PRODUTOR, SEM PRODUTORES ARTISTAS SÃO SONHADORES, E POR MAIS BELOS Q SEJAM OS SONHOS,ELES SÃO APENAS SONHOS।


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