quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Selma, por Ava DuVernay

Luther King sempre foi evidenciado como pacifista. Sempre! Principalmente em relação a seu opositor ideológico Malcolm X. Sempre que Malcolm é citado como errado, equivocado, Luther “surgia/surge” como a solução para todos os problemas. Luther é o homem que luta, mas pacificamente, sem armas, sem incitar a violência, sem meter medo nos brancos, sem ameaça-los. E o melhor, Luther King sempre é evidenciado por lutar ao lado dos brancos e ser um líder cristão.
Sempre desconfiei dessa imagem. Pois a luta contra o racismo é algo extremamente violento. Psicologica ou fisicamente, é violência pura. Para mim, infelizmente não há como escapar. E também desconfiava que essa imagem de eterno pacifista passivo era uma imagem branca. Quando comecei a ler mais sobre a história de ícones negros, me identifiquei com Malcolm e deixei King de lado... Como muitos que seguem King deixam seu “rival” também para escanteio... Aos poucos, King e sua imagem passiva foram destruídas. Um texto daqui, um argumento de lá...
Até que chego em Selma, produção que esse ano concorre aos Oscar de melhor filme, e minhas suspeitas sobre King se confirmam. A luta contra o racismo é sim algo extremamente violento. Seja ela feita pela paz, ou pela força...
Selma é o nome de uma cidade, do interior do EUA. Pequena, mas com cidadãos negros querendo exercer seu direito de votar. O ato simples é orquestrado com a perfeita cena de abertura em que uma mulher, vivida pela produtora do filme Oprah Winfrey, tenta tirar o que seria o “título de eleitor” e também uma permissão para o voto negro. A cena, pontuada por um silencio insuportável e planos extremamente fechados, detalha bem a angustia motivada pela humilhação!
Luther King vê em Selma um ponto crucial para a aprovação da ementa que faria negr@s cidadãos plenos em direitos. Sabemos que em uma República o ato de votar posiciona o homem ou mulher como cidadãos perante a sociedade. É justamente o ato de votar que tiraria o negro do ostracismo, acredita King. Para isso, o pastor se encarrega de fazer pequenas marchas pela cidade e também para a capital do estado do Alabama.

A politica estadunidense, branca e racista em seu cerne, tenta evitar – inclusive usando o FBI – a formação ou avanço das marchas de King. Mas o que eles não contavam é que todo homem pacífico é antes de tudo um grande estrategista. E King era inteligente o suficiente para edificar tudo a seu favor.
É aí que volto ao ponto inicial do texto, quando falo que minha desconfiança com King é comprovada em Selma. O pastor poderia ser pacífico, mas a violência era algo forte que cercava ele por TODOS os lados! Uma das cenas exemplo, é o resultado da primeira marcha que vai até o tribunal da cidadezinha. Luther em pé, quieto e o pau comendo. O racismo incita raiva, ódio, traumas, revolta... E muitas vezes isso ele não poderia controlar...
A condução desses momentos tensos e de cenas de extrema leveza são feitos com mãos firmes da diretora Ava DuVerney (condutora de episódios da série Scandal na terceira temporada), indicada merecidamente ao Globo de Ouro de Melhor Direção. Ava pega um recuso bastante usado no cinema, a violência explicita em câmera lenta e reconstrói a sua forma. Ela arrasta o movimento, mas não o esmiúça. Foca, em pontos que outros diretores não dariam atenção. Isso se vê em momentos da explosão numa casa onde crianças negras conversam sobre cabelo, ou no massacre na ponte, ou na morte dos brancos apoiadores de King. Ela mostra a violência de forma singular. Compreende que a violência que cerca King e Malcolm são diferentes. Outro fator peculiar é, Selma ser um filme de homens. A politica, principalmente a do século passado, foi um ato cercado de masculinidade. E Ava conduz o testosterona da forma precisa. As contradições masculinas são jogadas na tela sem desvios.
O que me incomoda em Selma é justamente culpa da diretora espetacular. Centrou-se em seu ator principal, nos registros do FBI sobre King para pontuar a história com veracidade e se esqueceu do elenco masculino branco... Ok, esquecer é um verbo forte, mas me incomoda muito essa coisa de filmes históricos falando sobre racismo ainda deixarem os personagens brancos racistas serem interpretados de forma caricata. Como se dissesse “Olha, estou dizendo coisas ruins, fazendo coisas ruins, olha como sou mal”. Se apresenta as contradições negras com maestria que tomasse cuidado com os personagens brancos, aqui separados – novamente – em bons e demônios.
O único que se salva dessa papagaiada é Tom Wilkinson fazendo o presidente Lyndon B. Johnson. Seu trabalho é minucioso, mostrando a incoerência de um homem branco passando por um processo anti racista dentro da sua consciência. Perfeito! E a forma como ele conduz a politica a favor dos negros, mas tirando ele da reta, é um ponto impar no filme.

Carmem Ejogo, ou Coretta Scot King, faz de seus momentos algo grandioso. Adoro isso no cinema! Duas cenas suas chamam atenção; o encontro com Malcolm X e a descoberta das traições de King com outras mulheres... Ponto forte do filme. King tinha defeitos. Seu social e o humano tinham falhas. O filme passa e não passa por cima disso, só vendo para entender...
Mas o filme é mesmo de David Oyelowo. Protagonista! Contido! Ele nunca deixa King crescer mais que o texto, mais que a câmera, mais que a grandiosidade das marchas. E se torna gigante justamente por isso!

Selma é antes de tudo um filme sobre violência. E de como vencer os caminhos violentos, usando de várias armas... A estratégia é uma arma. A calma também. a analise é uma arma. A diplomacia outra. A paz pode ser uma bomba de proporções gigantescas, mas acima de tudo, ela não é um ato passivo. E nunca será!