Fotos: Cleiton Lima |
Assisti pela primeira
vez A Comida de Nzinga na sua primeira temporada. No antigo Teatro XVIII, junto
ao renascimento do Teatro Negro em Salvador. A peça me chamou atenção por
vários motivos. Primeiro pelo conteúdo, tratando de uma rainha africana com
influencia direta aqui no Brasil. Segundo pelo elenco jovem e vigoroso.
Terceiro por ser uma peça onde o coro NÃO é feito para enfeitar, ou mais um
personagem da peça, o coro É a peça. Quarto por a peça visualmente ser linda e
simples. E quinto e último... A cena das batalhas feitas em sapateado. Tive
vontade na época de gritar... e gritei no teatro! Era fantástico ver tudo.
A peça revolucionou
pelo seu conteúdo e por ser um projeto com atores jovens que falava para todos.
Era uma peça sobre o passado, de forma jovem, distribuindo grande energia pelo
palco.
Sete anos depois,
Nzinga retorna com reformulação do elenco e parte da equipe técnica. Passando
pelos teatros da cidade em uma turnê que fez os 4 cantos de Salvador ver a
história da Rainha do Ndongo. Estão lá o texto de Aninha Franco e Marcos Dias,
que mescla o tom histórico com sua visão atual dos dilemas da mulher e também
sobre racismo. A direção de Rita Assemany que mantém os dois personagens principais
da peça (Nzinga e o Coro) unidos e fortes. A voz de Virginia Rodrigues em off
belíssima como sempre. As coreógrafas Cibele Brandão (sapateado) e Ceiça do
Amor Divino (preparação corporal e coreografias) que executam novamente um
ótimo trabalho. O fabuloso e colorido figurino de Miguel Carvalho e o cenário
de Hamilton Alves simples e com impacto impressionante. E é claro Clara Paixão
que retorna ao papel título do espetáculo com força e brilho que a personagem
precisa. Até quando sorri o movimento é carregado de força!
A reformulação total
efetiva desta nova montagem é o coro da peça. Feito por jovens atores, mas quem
acompanha a cena teatral de Salvador, já viu cada um deles em outras montagens.
Ou seja, são jovens, mas experiência eles tem. Alguns, vasta experiência! Raimundo
Moura Leo Santis (Gaiola O Caçador de Solidão), Guilherme Silva (Breve), Bruno
Roma (Mar Morto), Daniele Anatólio (Ponto Negro em Tela Branca), Diogo Teixeira
(Casulo), Fernanda Silva (Conspiração dos Alfaiates), Josi Acosta (A
Conferencia), Kadu Fragoso (Engenho K), Pedro Albuquerque (Domingo No Parque), Miriam
Sampaio (Opera do Malandro) e Nadja Occioly carregam o espetáculo narrando com maestria a história da grande rainha.
A experiência de ver A
Comida de Nzinga no Espaço Cultural Barroquinha também deve ser ressaltada. O
lugar é incrível para o espetáculo, por mais que o cenário pareça compresso no
palco pequeno do teatro, a forma do espaço cultural, que é dentro do que foi as
ruinas de uma igreja, acrescenta e muito o clima do texto. Principalmente
quando Nzinga se “torna portuguesa” e católica. O impacto da história da igreja
construída por negros escravizados e uma rainha africana “tornando-se” branca é
muito forte. Fora que o espaço restaurado contribui e muito para a cenografia.
Escrito por Aninha
Franco e Marcos Dias, o texto de A Comida de Nzinga é ágil. Mistura muito bem
as referencias africanas e a baianidade nossa de cada dia em um só lugar. Os
autores sabem que a diferença entre África e Bahia é quase nula e que a gente
vista lá não é diferente do povo daqui. Apesar disso, o texto escorrega em um
ponto: a forma como fala sobre a escravidão de negro para negro. De africano
para africano.
Nzinga foi rainha de
uma civilização grandiosa, toda civilização grandiosa antiga utilizou da
escravidão. O problema é justamente o porque. Em um tempo onde AINDA se discute
muito a “contradição” de negros que escravizaram outros negros, os autores,
perderam oportunidade enorme de discutir isso pela primeira vez no teatro
baiano de forma aprofundada. Digo isso, pois o texto é cheio de correlações
entre a visão do passado “pelo passado” e a visão do mesmo por nós que estamos
no presente.
Kia Mbandi é citado no
texto pois “se aliou aos muzundu português pra trocar seus escravos por cachaça
e fumos brasileiros” (Cena 8). Não é explicado no texto o por que isso. Por que
um negro dava seu povo negro para outro fazer de escravo? Estamos falando de um
texto em que, muito mais que se viva a situação, as personagens narram as
histórias. Por que não responder essa pergunta de forma contundente, como o
texto responde varias incógnitas na vida da Rainha? Porque foi uma escolha dos
autores ué! Mas perderam uma oportunidade única de responder questionamentos
como: Por que um negro escravizou outro negro? Por que eles entregavam o povo
negro para o povo branco europeu? A escravidão africana compartilhava da mesma
ideologia da europeia? Quais as diferenças? De africano para africano existia a
coisificação do ser humano como na escravidão europeia?... Nzinga chama o irmão de fraco, logo depois ele não aguenta a força portuguesa indo pedir ajuda a ela e em seguida é relatado que ele ainda escraviza seus irmãos. As intenções dos personagens são históricas e pouco exploradas pelo texto. Fora que ela também é dona de atitudes discutíveis. Pois toda heroina/heroi é composta de contradições e é justamente isso que os humaniza. Nesse ponto o texto coloca os personagens no arquétipo bom/ruim. Desenvolver o tema, seria uma forma de “calar
a boca” de muito liberal frustrado que insiste em dizer que escravidão é tudo a
mesma coisa e que nós negros também castigamos nosso próprio povo...
E a cena do sapateado
onde a batalha de Nzinga vs os Muzundu é mostrada continua impressionante e o
ponto chave do espetáculo. Onde elenco se entrega por inteiro. As frases de
efeito soltas por Nzinga e a movimentação do elenco... não tem como não se
impressionar. Com certeza uma das soluções mais bem feitas do teatro baiano
atual. E no tempo onde as soluções dos diretores são resumidas a projeções em
telões, ver um teatro analogicamente criativo é um alivio!
Vale a pena ver Nzinga
reinar! Junto a ela, reina o público pois aprende, compartilha sentimentos, vê
a luta de si mostrada por um outro parecido nos palcos. Vê e sonha! Nzinga tem
fome, mas a cada espetáculo nos dá muito que comer!
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