Luther King sempre foi
evidenciado como pacifista. Sempre! Principalmente em relação a seu opositor
ideológico Malcolm X. Sempre que Malcolm é citado como errado, equivocado,
Luther “surgia/surge” como a solução para todos os problemas. Luther é o homem
que luta, mas pacificamente, sem armas, sem incitar a violência, sem meter medo
nos brancos, sem ameaça-los. E o melhor, Luther King sempre é evidenciado por
lutar ao lado dos brancos e ser um líder cristão.
Sempre desconfiei dessa imagem. Pois
a luta contra o racismo é algo extremamente violento. Psicologica ou
fisicamente, é violência pura. Para mim, infelizmente não há como escapar. E
também desconfiava que essa imagem de eterno pacifista passivo era uma imagem
branca. Quando comecei a ler mais sobre a história de ícones negros, me
identifiquei com Malcolm e deixei King de lado... Como muitos que seguem King
deixam seu “rival” também para escanteio... Aos poucos, King e sua imagem
passiva foram destruídas. Um texto daqui, um argumento de lá...
Até que chego em Selma, produção
que esse ano concorre aos Oscar de melhor filme, e minhas suspeitas sobre King
se confirmam. A luta contra o racismo é sim algo extremamente violento. Seja
ela feita pela paz, ou pela força...
Selma é o nome de uma cidade, do
interior do EUA. Pequena, mas com cidadãos negros querendo exercer seu direito
de votar. O ato simples é orquestrado com a perfeita cena de abertura em que
uma mulher, vivida pela produtora do filme Oprah Winfrey, tenta tirar o que
seria o “título de eleitor” e também uma permissão para o voto negro. A cena,
pontuada por um silencio insuportável e planos extremamente fechados, detalha
bem a angustia motivada pela humilhação!
Luther King vê em Selma um ponto
crucial para a aprovação da ementa que faria negr@s cidadãos plenos em
direitos. Sabemos que em uma República o ato de votar posiciona o homem ou
mulher como cidadãos perante a sociedade. É justamente o ato de votar que
tiraria o negro do ostracismo, acredita King. Para isso, o pastor se encarrega
de fazer pequenas marchas pela cidade e também para a capital do estado do
Alabama.
A politica estadunidense, branca
e racista em seu cerne, tenta evitar – inclusive usando o FBI – a formação ou
avanço das marchas de King. Mas o que eles não contavam é que todo homem
pacífico é antes de tudo um grande estrategista. E King era inteligente o
suficiente para edificar tudo a seu favor.
É aí que volto ao ponto inicial
do texto, quando falo que minha desconfiança com King é comprovada em Selma. O
pastor poderia ser pacífico, mas a violência era algo forte que cercava ele por
TODOS os lados! Uma das cenas exemplo, é o resultado da primeira marcha que vai
até o tribunal da cidadezinha. Luther em pé, quieto e o pau comendo. O racismo
incita raiva, ódio, traumas, revolta... E muitas vezes isso ele não poderia
controlar...
A condução desses momentos tensos
e de cenas de extrema leveza são feitos com mãos firmes da diretora Ava
DuVerney (condutora de episódios da série Scandal na terceira temporada),
indicada merecidamente ao Globo de Ouro de Melhor Direção. Ava pega um recuso
bastante usado no cinema, a violência explicita em câmera lenta e reconstrói a
sua forma. Ela arrasta o movimento, mas não o esmiúça. Foca, em pontos que
outros diretores não dariam atenção. Isso se vê em momentos da explosão numa
casa onde crianças negras conversam sobre cabelo, ou no massacre na ponte, ou
na morte dos brancos apoiadores de King. Ela mostra a violência de forma
singular. Compreende que a violência que cerca King e Malcolm são diferentes.
Outro fator peculiar é, Selma ser um filme de homens. A politica,
principalmente a do século passado, foi um ato cercado de masculinidade. E Ava
conduz o testosterona da forma precisa. As contradições masculinas são jogadas
na tela sem desvios.
O que me incomoda em Selma é
justamente culpa da diretora espetacular. Centrou-se em seu ator principal, nos
registros do FBI sobre King para pontuar a história com veracidade e se
esqueceu do elenco masculino branco... Ok, esquecer é um verbo forte, mas me
incomoda muito essa coisa de filmes históricos falando sobre racismo ainda
deixarem os personagens brancos racistas serem interpretados de forma caricata.
Como se dissesse “Olha, estou dizendo coisas ruins, fazendo coisas ruins, olha
como sou mal”. Se apresenta as contradições negras com maestria que tomasse
cuidado com os personagens brancos, aqui separados – novamente – em bons e demônios.
O único que se salva dessa
papagaiada é Tom Wilkinson fazendo o presidente Lyndon B. Johnson. Seu trabalho
é minucioso, mostrando a incoerência de um homem branco passando por um
processo anti racista dentro da sua consciência. Perfeito! E a forma como ele
conduz a politica a favor dos negros, mas tirando ele da reta, é um ponto impar
no filme.
Carmem Ejogo, ou Coretta Scot King,
faz de seus momentos algo grandioso. Adoro isso no cinema! Duas cenas suas
chamam atenção; o encontro com Malcolm X e a descoberta das traições de King
com outras mulheres... Ponto forte do filme. King tinha defeitos. Seu social e
o humano tinham falhas. O filme passa e não passa por cima disso, só vendo para
entender...
Mas o filme é mesmo de David Oyelowo.
Protagonista! Contido! Ele nunca deixa King crescer mais que o texto, mais que
a câmera, mais que a grandiosidade das marchas. E se torna gigante justamente
por isso!
Selma é antes de tudo um filme
sobre violência. E de como vencer os caminhos violentos, usando de várias armas...
A estratégia é uma arma. A calma também. a analise é uma arma. A diplomacia
outra. A paz pode ser uma bomba de proporções gigantescas, mas acima de tudo,
ela não é um ato passivo. E nunca será!