terça-feira, 29 de junho de 2010

Entrevista com Cidinha da Silva (PARTE 2)

6. Você além de muitos afazeres também é blogueira, pelo que vi ao contrário de muitos blogs por ai, você posta com certa freqüência nele sobre cultura negra, literatura, quadrinhos e sua vida profissional também. Vi pelas postagens que sente às vezes vontade de desistir e tem vezes que parece estar animada escrevendo-as. O que a motivou usar esta ferramenta virtual?

Iniciei o blogue pouco depois de começar a publicar literatura e tinha o objetivo primeiro de dialogar com meu público, de atingir a um público maior e de ocupar uma fatia de espaço virtual pouco ocupado por escritores e escritoras negros brasileiros. Nunca pensei no blogue como um espaço para produzir literatura, vejo-o muito mais como um espaço de expressão política por meio da arte que acredito e gosto. Às vezes oscilo quanto à continuidade dele porque tenho menos tempo para escrever do que gostaria, isso às vezes me frustra muito. Gostaria de postar mais textos autorais do que notícias, de ter tempo para comentar as notícias e desenvolver minhas reflexões.

  1. Foi através do seu blog também que acabei sabendo que obras suas estarão em breve em versões cinematográficas. Instantaneamente lembrei filmes como A Cor Púrpura, que foi odiado inicialmente pela autora Alice Walker até ela, anos depois, compreender que seu livro tinha virado outro produto e também de Paulo Lins cujo seu Cidade de Deus foi reinventado nos cinemas. Quais são as expectativas e medos em relação à sétima arte inspirada na sua literatura?

Primeiro é importante dizer que algumas obras minhas estão em processo de adaptação como curtas de ficção, nada de telona, por enquanto. Segundo, fico muito animada, sempre, porque acho o cinema um grande barato. O Joel Zito Araújo, amigo querido e cineasta que respeito muito, disse certa vez que tenho textos muito “fílmicos”. Pelo que entendi do comentário dele, são textos que se prestam bem ao cinema. Outro amigo querido, o poeta Ricardo Aleixo menciona a agilidade da minha escrita, o que também está relacionado à imagem, não é? Então, esse “coqueteio” com o cinema é algo que me alegra muito. Por fim, pelo menos de forma racional, separo a obra literária das outras expressões artísticas que ela inspira. Mas gostaria muito que meu texto fosse para o teatro, por exemplo, assim como o texto de Marcelino Freire tem ido, ou seja, de maneira integral, sem cacos, sem xistes de ator, sem acréscimos ou cortes na palavra minha. Que a arte do ator apareça pela interpretação do meu texto que se manteria integral, intacto, isso é um sonho de consumo. Neste momento, a Iléa Ferraz, ilustradora do Pentes e também atriz de sucesso, está montando um espetáculo a partir dos textos do livro “Os nove pentes d’África”, com estréia prevista para agosto, no espaço Tom Jobim, aqui do Rio de Janeiro. Vi uma prévia no lançamento do Pentes, realizado em março deste ano, no Centro Afro-carioca de Cinema, também no Rio. Trata-se de uma criação de dramaturgia, música e de expressão corporal a partir do texto, escrito por mim e das imagens dos pentes desenhados por ela, mas ali não estará o texto “Os nove pentes d’África” em sua integralidade. É uma possibilidade interessante, exige um desapego afro-zen. Estou empenhada em abrir o coração para as novas obras que nasçam a partir da minha. Entretanto, há uma coisa que me irrita, é quando atores ou performers dão ao meu texto uma corporeidade espalhafatosa que meu texto não proporciona. Por mais que a pessoa viaje, não cabem efeitos exagerados em um texto econômico como o Pentes, por exemplo. Já aconteceu algo assim e fiquei bastante frustrada. Senti como se a atriz pusesse meu

texto no chão e descarregasse um pente de tiros de metralhadora sobre ele. Pareceu-me uma performance pronta (e talvez eficaz em outros contextos) encaixada no meu pobre texto.

  1. Você é graduada em historia pela UFMG. Só que virou escritora de renome no cenário da literatura negra nacional. Existe lugar para a historiadora Cidinha quando a escritora entra em ação? A historia que estudou na universidade influencia de alguma forma as historias que conta como escritora?

Sua pergunta tem várias partes. Para início de conversa não me vejo como uma escritora de renome em qualquer cenário, agradeço sua manifestação de carinho e apreço por mim e por meu trabalho. Sou uma escritora séria, dedicada, uma pessoa que lê muito, inclusive para enfrentar suas inúmeras lacunas de conhecimento, que estuda para conhecer novas técnicas de escritura e apurar as que tem, além de escrever e reescrever todo o tempo que minha vida de operária do intelecto (de onde vem meu sustento) permite. Eu tenho verve de pesquisadora e isso me acompanha em todas as atividades, não a pesquisa acadêmica, mas a pesquisa movida pela curiosidade de conhecer, pela necessidade de desenhar a planta baixa de uma obra literária, pela necessidade de melhor construir um projeto artístico. Relendo meus primeiros textos, os publicados e principalmente os que não publiquei, seja pelo meu próprio discernimento, seja por sugestão de outrem, percebo que, mais do que a historiadora, a ativista me tolhia. Hoje estou um pouco mais solta, mas às vezes ainda sou lembrada (por mim mesma ou por leitores críticos) de que a ativista deve se recolher quando estou escrevendo literatura. Como disse Nadine Gordimer ao comentar sua produção literária e a luta inescapável contra o racismo na África do Sul dos tempos terríveis do Apartheid, “estamos discutindo assuntos importantes. Agora vamos deixar de falar sobre eles para que eu possa voltar à questão de escrever sobre eles”.

  1. Vi criticas, sempre muito positivas, sobre seus livros, principalmente “Você me deixe, viu?Eu vou bater meu tambor!”. Na maioria delas, evocam um lado profundo, de uma literatura engajada, feminista, quase uma pretensa responsabilidade sua em escrever literatura negra feminina, pois é autora negra. Eu achei sua linguagem muito simples, temas como sexualidade, amor, relações entre homens e mulheres soltam para o leitor de forma despretensiosa. Você se sente cobrada em escrever literatura negra sobre mulheres, pois é uma autora negra? Como lida com as criticas positivas e já recebeu alguma negativa, já que não encontrei nenhuma?

Primeiro vou comentar o preâmbulo para depois responder às perguntas. Você é um afortunado, eu tenho menos acesso às críticas do que você. Nós, no Brasil, inclusive na Universidade, somos pouco críticos, não é? A crítica é tomada como algo pessoal (às vezes o é, de fato) e as pessoas têm medo de ganhar inimigos ao criticar um trabalho. Confesso que vez ou outra, eu mesma tenho medo de criticar, principalmente trabalhos de amigos. Creio que tendo a lidar bem com a crítica séria e fundamentada, mas se forem coisas destruidoras, maldosas ou burras, convoco a dupla dinâmica das estradas e vamos buscar caminhos. Sim, minha linguagem pretende ser simples. Quero alcançar as pessoas, quero ser lida. Além da simplicidade, busco a economia textual, pois sou prolixa e não quero que meu texto o seja. Sim, me sinto cobrada, apenas por homens que pensam saber o que uma prosadora negra deveria produzir em terras tupiniquins. Em geral, eu ouço as sugestões deles, atenta e muda, mas elas entram por uma orelha e saem pela outra, não esquentam lugar no meu cocoruto.

  1. Vi que o livro Cada Tridente em Seu Lugar foi lançado também em formato e-book. Mas muitos autores atualmente publicam somente na web seus escritos, às vezes por conta que não possuem editores ou até por gosto mesmo dessa nova ferramenta. Está em seus planos publicar algo somente no mundo virtual?

O Tridente será lançado como livro eletrônico, em breve. Estou muito contente porque a editora escolheu três autores para abrir esse caminho e eu estou entre eles. Tenho planos de publicar uma obra virtual, sim. Será um trabalho embasado pelo Pentes e em conversas sobre literatura, especificamente sobre a minha produção literária, desenvolvidas com pessoas diversas em comunidades de favela e periféricas da cidade do Rio de Janeiro.

  1. Para Cidinha da Silva ser escritora negra no Brasil, um país com racismo velado, é...

Uai, racismo velado onde, cara pálida? O racismo aqui é virulento - em que pese não haver racismo brando em lugar algum, é só para contrapor o suposto disfarce - e escancarado. Mata, obstrui e aniquila. Eu sou uma mulher negra aqui e em qualquer lugar do mundo. Mais do que uma escritora negra sou uma negra escritora, tal como seria uma negra médica, gari, cozinheira, professora universitária. Ser negra é nome. É substantivo, principalmente em sociedades racistas e racializadas como a brasileira.

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