terça-feira, 29 de junho de 2010

Uma Prosadora de Mão Cheia! Entrevista com Cidinha da Silva (PARTE 1)

Ao receber as respostas da entrevista com a escritora Cidinha da Silva tive instantaneamente a mesma sensação da menina que consegue o livro tão sonhado no conto clássico de Clarice Lispector, Felicidade Clandestina. Cidinha me pediu calma semanas atrás para responder as questões que lhe enviei e eu (não muito) calmamente esperei. Estava ansioso por suas respostas, confesso. Cidinha da Silva é prosadora de mão cheia, organizadora de Ações Afirmativas em Educação: experiências brasileiras (Selo Negro Edições, 2003, 3a edição). Co-autora de Racismo e Anti-racismo na Educação: repensando a nossa escola (Selo Negro Edições, 2002, 4a edição)e Racismo no Brasil (Peirópolis, 2002). Tem dois livros de histórias curtas publicados pela Mazza Edições: Cada Tridente em Seu Lugar (2007, 2a edição)e Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor! (2008), além de outros trabalhos. Na entrevista postada abaixo (dividida em duas partes) ela fala sobre o ato de escrever, como se dá a construção de seus textos e também sobre literatura, cinema, outros escritores, racismo, cultura negra e uma infinidade de assuntos... Já li e reli essa entrevista antes de posta-la, descobri universos, aprendi muito a cada linha escrita. Ler Cidinha da Silva é sempre um aprendizado. Aproveite.
  1. A literatura tornou-se um caminho para expor suas idéias a partir de que ponto na sua vida? E o porquê escolheu a prosa como o seu caminho na escrita?

Eu comecei a publicar literatura em 2006, 1a edição do Tridente, aos 39 anos. Minha paixão pela leitura e pela escrita, entretanto, teve início quando comecei a ler, aos 5 anos. Os quadrinhos foram a primeira descoberta e mesclaram-se (continuam a se mesclar) com diferentes livros e autores ao longo da vida. Eu me sinto fluida, feliz e confortável ao escrever prosa. Os poemas doem muito, prefiro lê-los. Aliados à dor que me afasta (tenho pouca resistência para sofrer ao escrever), faltam-me talento poético e técnica para criar poemas. Ao contrário do que muita gente professa por aí, escrever um poema é algo dificílimo. Lapidar a palavra até alcançar a precisão da expressão não é para muitos. Tenho me contentado em pescar a poesia da vida vivida para a minha prosa.

  1. Existe muita informação vinculada no Brasil que o próprio Brasil não lê, não se mostra interessado pela literatura, por um arsenal de motivos, mas o principal que geralmente citam são os altos preços das publicações. Como autora de livros infantis, crônicas, além de volumes ligados a área da Educação, como você enxerga a relação da literatura com o brasileiro?

Antes de qualquer coisa é preciso investir na formação de público-leitor. Diversos são os fatores que dificultam a promoção da leitura, o gosto pela literatura, e são anteriores ao preço elevado dos livros. Vejamos: inexiste, no Brasil, uma cultura de valorização do livro, do(a) leitor(a), do conhecimento e do prazer de ler. Falta incentivo ao contato das pessoas não intelectualizadas com o objeto-livro, principalmente por parte das elites intelectuais e dirigentes, que seguem, ao longo de séculos, tratando o livro como um bem destinado a um grupo de pessoas eleitas. O número de bibliotecas públicas nas cidades, com programas massivos e atraentes para convidar as pessoas a freqüenta-las é insuficiente. Não existe também um número satisfatório de bibliotecas nas escolas públicas, quando existem, possuem acervos ultrapassados e pouco dinâmicos no sentido de fomentar a circulação de livros. Graça o desestímulo à leitura na maior parte do ensino de Português e Literatura nas escolas públicas brasileiras, no qual se privilegia aquilo que supostamente “o autor quer dizer” e que o professor (onisciente) sabe o que é, restando ao pobre estudante encontrar “as respostas certas” no processo de interpretação de texto, que, por si só, deveria ser algo subjetivo e pessoal. Por fim, o preço dos livros de literatura no Brasil não é competitivo comparado a outras opções de entretenimento. O alto preço das obras é definido por fatores agregados, tais como: baixa tiragem de cada edição, circulação lenta dos livros na venda a varejo (em livrarias e similares) e ausência de uma política de popularização e valorização da leitura.

3. Nos últimos anos a literatura infantil no Brasil teve uma grande mudança com a chegada de vários exemplares com histórias envolvendo a temática da cultura afro brasileira e africana sem estereótipos. O curioso é observar dois movimentos que se vê na compra desses exemplares; o adulto que compra o livro para a criança (público alvo) e adultos que compram os livros para si mesmos. Para você, escritora também de uma novela juvenil, qual o impacto que esta nova literatura negra tem sobre adultos e crianças negras?

Houve mudanças pontuais e simbólicas, discordo que tenha sido algo grande. A inflexão de impacto na literatura infantil e juvenil no Brasil, de maneira global, ainda está circunscrita aos anos 70 e 80, com a geração dos grandes escritores e escritoras do gênero que vieram após Lobato, a saber, Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga e Bartolomeu Campos Queiroz, para citar alguns. No que concerne aos escritores negros, no gênero, temos o precursor e largamente premiado Joel Rufino dos Santos, Geny Guimarães com os belos e premiados “A cor da ternura” e “Leite de peito” e contemporaneamente, Heloísa Pires Lima, que vem fazendo um trabalho muito consistente, principalmente movido pelo diálogo com culturas africanas, além de Edimilson de Almeida Pereira, autor de “Os reizinhos de Congo”, “Histórias trazidas por um cavalo-marinho” e “Rua Luanda”, dentre inúmeras outras publicações. Um autor que admiro muitíssimo, cuja produção literária me ensina muito. Dentre a vasta obra da octogenária e ativa Ruth Guimarães, dedicada à cultura popular do interior de São Paulo, há vários títulos que também podem ser lidos e desfrutados pelo público infanto-juvenil, embora ela não se defina como uma escritora do gênero. Em que pese não ser especialista no tema, arrisco dizer que ainda somos poucos escritores e escritoras negros com trabalho consistente no campo da chamada literatura infanto-juvenil. Pululam livros de afirmação da identidade negra e também os de auto-ajuda para crianças negras (sem esquecer que existem os de auto-ajuda para crianças brancas, nos quais o “inimigo” pode ser o “pivete”, o “trombadinha”, o morador de favela ou de rua, o bom de bola delinqüente e perigoso, invariavelmente representados por personagens negras). Livros em que, o mais das vezes, a tal “mensagem para a criança” sobrepuja qualquer lampejo de criação literária. Mas, não sejamos mais realistas do que o rei, existe espaço no mercado editorial e em nossos combalidos corações para essa produção. Eu mesma sou uma compradora contumaz de livros em que personagens negras tenham destaque na trama, em que apareçam na capa ou quarta capa em posições dignas... compro, leio, faço a triagem, vejo o que serve para presentear os pequenos da minha vida, os que servirão como referências boas ou ruins para minhas aulas e textos, e aqueles que lerei duas, três vezes, por prazer ou para estudá-los. Penso que essa produção de prosa afirmativa da identidade negra, por parte de autores e autoras negros é que abunda, mais do que uma produção literária, propriamente. Por outro lado, há autores não-negros com trabalhos respeitáveis de literatura dialógica com matrizes afro-brasileiras e/ou africanas, neste campo destaco Rogério Andrade Barbosa (com altos e baixos) Lia Zatz e Carolina Cunha. Esta última, devo confessar, não consigo saber se é negra ou não, pois não há referências quanto ao seu pertencimento racial no catálogo ou no sítio da editora (SM Edições). Não há fotografias nos livros e nunca encontrei imagens confiáveis na Internet, é uma incógnita. Encontrei apenas uma definição de que é “baiana de Salvador e desde menina é atraída pelos mistérios dos encantos africanos, por isso se tornou pesquisadora de línguas e artes africanas no Brasil”. O trabalho literário, o que mais importa, é de excelente qualidade e as ilustrações também são belíssimas, feitas por ela. A grande novidade, ainda tímida, me parece ser a entrada de escritores negro-africanos no mercado editorial brasileiro: desde o poderoso angolano Ondjaki, que conta com o lastro marketeiro de uma das maiores editoras do país para sua literatura de incontestável qualidade a autores bem menos conhecidos, mas com um trabalho muito bom, tais como: Adwoa Badoe e Meshack Asare, de Gana, Mamadou Diallo, do Senegal e Sunny, da Nigéria, dentre outros.

4. Você tem cinco livros publicados. Como se deu processo de construção deles? É algo que vai acontecendo de forma livre ou obedece um caminho seguro, regras/padrões/prazos, como prefere fazer alguns autores?

Tenho quatro livros publicado, três de literatura e um de ensaios. O quinto livro está pronto, mas ainda inédito. Segue o processo de garimpar editoras e participar de concursos, é também um infanto-juvenil. Normalmente sou uma pessoa organizada para trabalhar, o desenho e organização dos processos é importante para mim, mesmo que vá mudando muita coisa pelo caminho. Gosto de escrever pelas manhãs, meu horário mais produtivo para a vida. Quanto a prazos, depende da demanda, tanto da minha demanda particular, interno-afetiva com o texto em tela, quanto da demanda externa. Um bom exemplo é quando tenho prazo para entregar o trabalho a uma editora ou para inscrever o livro em um concurso. Os prazos e a organização não me atrapalham, ao contrário, me ajudam.

  1. O que muda em Cidinha da Silva a cada livro escrito e publicado?

Creio que são as mudanças trazidas pelas coisas boas que acontecem na vida: às vezes são surpreendentes, outras são presentes esperados e merecidos, às vezes são avatares de alegria, de melhores tempos... um livro escrito e publicado é invariavelmente uma coisa boa e as coisas boas nos tornam seres humanos melhores.

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