terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

ENTREVISTA: Fernanda Julia.

Diretora de incrível talento e ousadia, Fernanda Júlia veio do interior da Bahia, mais precisamente da cidade de Alagoinhas, para brilhar! De suas mãos sairam espetáculos como Perfil - Só Vendo Para Crer, A Eleição, Shirê Obá - A Festa do Rei e Ogum Deus e Homem (na foto ao lado Fernanda na estréia de Ogum em seu discurso de agradecimento com elenco e referenciais no palco). Em tão pouco tempo de trabalho em Salvador trabalhou em espetáculos que foram marcos no teatro baiano, seja a frente como diretora geral ou em outras funções que exerce como assistente de direção ou operadora de luz e som. Fernanda, é um "novo" talento que se aprimora a cada dia, cada montagem. Digo novo entre aspas, pois em sua cidade como uma desbravadora (algo que todo artista é!) trilhava seu caminho, seu talento junto a Cia de Teatro Nata fundada por ela. Essa menina de 31 anos tem uma alma encantandora e na entrevista abaixo nos abre um pouco de suas visões (sim, são várias!!!) sobre o teatro, academia eurocentrada, cultura negra, teatro em Salvador e outras coisinhas...
Você já foi baiana de acarajé e professora. Ao mesmo tempo em que estava nestas carreiras, na cidade de Alagoinhas, trilhava os primeiros passos como diretora da Cia de Teatro Nata, fundada por você. O que ficou da Fernanda Julia deste tempo de trabalhos paralelos, do tabuleiro e também da sala de aula na nova, hoje diretora de teatro “recém” formada pela Escola de Teatro da UFBA?
A Fernanda Júlia que possuía trabalhos paralelos ainda continua, pois apesar de ter me formado e já algum tempo está vivendo exclusivamente de teatro é necessário ter muitas atividades para garantir o salário no final do mês, a diferença é que hoje trabalho exclusivamente dentro da área teatral. O fato de ter sempre me desdobrado em funções díspares como baiana de acarajé, professora e diretora forjou o meu caráter profissional, estas atividades influenciaram todo o meu curso na Escola de Teatro, pois a disciplina e a seriedade que é necessária para ser baiana de acarajé e professora me fizeram encarar o teatro com a mesma seriedade e respeito. É o meu ofício, o que escolhi pra mim, o que quero e gosto de fazer.

A Cia de Teatro Nata tem dez anos de existência, é uma Cia que vem do interior da Bahia, enfrentando toda a invisibilidade que os artistas do interior enfrentam, mas conseguiu se sobressair finalmente. A partir de qual trabalho você sentiu que a Cia tinha amadurecido e poderia trilhar outros caminhos e por que você escolheu este momento?
Na verdade tudo é muito processual, o Nata em 2004 começou a enfrentar desafios maiores, pois quando fomos selecionados pelo Teatro Vila Velha para participarmos da mostra a Arte do interior na capital, resultado do projeto Teatro de cabo a rabo e pela primeira vez nos apresentaríamos num palco em Salvador e ainda mais num teatro que tem a história que o Vila tem, percebemos que apartir daquele momento o próximo passo seria definitivo. Ou assumíamos o teatro efetivamente ou não faríamos mais nada. Optamos por assumir o teatro e mergulhar em todas as camadas necessárias para sermos profissionais da cena. Então tudo que veio depois foi a confirmação disso. Estávamos amadurecendo... Mas o momento mais preciso dessa maturidade tem haver com montagem do espetáculo Shirê Obá “A festa do Rei” esta montagem é um divisor de águas para a Cia Nata.
Nesta montagem o Nata ganhou seu primeiro edital público de montagem, trabalhou com profissionais de peso em Salvador como Fernanda Paquelet, Jarbas Bittencourt, Marcelo Jardim, Marilza Oliveira, Thiago Romero. Realizou pela primeira vez em Alagoinhas uma temporada de um mês no Centro cultural da cidade, antes da Cia Nata nenhum espetáculo havia ficado tanto tempo em cartaz o máximo eram três dias. Recebeu três indicações no Prêmio Braskem de teatro 2010 a de melhor espetáculo adulto, direção revelação e recebeu prêmio na categoria especial pela trilha de Jarbas Bittencourt. A Cia afinou o discurso artístico e político e a linguagem estética debruçando-se sobre a cultura africana com foco e inspiração primordial no Candomblé.
A partir dessa montagem o grupo entrou numa nova fase a de profissionalizar-se efetivamente ao ponto de em 2010 ganhar o I Prêmio Nacional de Expressões Afro brasileiras patrocinado pelo MINC e Fundação Cultural Palmares. Na verdade não escolhi o momento ele foi resultado de uma confluência de fatos que nos levou até onde chegamos. Mas a invisibilidade do artista do interior ainda persiste, nós ainda encontramos barreiras enormes para realizar as atividades da Cia, principalmente na nossa cidade.

Dentro do histórico da Cia de Teatro Nata, do repertorio escolhido por você e os componentes da Cia, existem fatores fixos como a cultura nordestina, permeada pela negritude e as religiões de matriz africana. Ao mesmo tempo você já montou textos da Cia de Teatro Os Melhores do Mundo, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos... O que motiva você a escolha de determinada temática ou texto para ser abordada em seus espetáculos?
Antes de qualquer coisa temos que pensar o que queremos dizer, porque falar de tal tema e o que queremos com o espetáculo. Após respondermos estas questões é que vamos procurar o texto que caiba no nosso discurso. Existem as nossas preferências temáticas, mas o discurso político, ou seja qual é a utilidade deste espetáculo para o espectador fala muito mais alto do que os nossos devaneios cênicos. Mas devaneamos também.

Nesta estrada percorrida estes dez anos, você com certeza cruzou o caminho de outros diretores. Destes qual você ressalta o trabalho, virando referencia na sua forma de fazer teatro?
Eu sou uma privilegiada com tão pouco tempo de carreira tive a oportunidade de conviver com grandes mestres do teatro. São artistas que para além de referências o seu fazer artístico forjaram os pilares estéticos da Cia de Teatro Nata. São eles: Márcio Meirelles, Chica Carelli e o Bando de Teatro Olodum, Hilton Cobra e a Cia dos Comuns, Luiz Marfuz, Ângelo Flávio e o CAN.

Como você enxerga hoje o teatro afro-centrado na Bahia? E como o público de diferentes raças está enxergando esse “novo” teatro em Salvador?
O teatro afro-centrado é necessário, urgente e ainda escasso. O povo negro precisa ver-se representado em todas as mídias disponíveis e isso ainda não acontece plenamente, somos muitos, na verdade somos maioria e são as nossas histórias, conflitos, mitologia enfim cultura... que deveria nortear o padrão estético do que é feito no teatro, cinema, tv etc... O público de teatro em Salvador em sua maioria ainda estranha espetáculos como Shirê Obá e Ogum, mas por outra lado há uma gama de espectadores ansiosos e desejosos de montagens como Bença, O dia 14, Silêncio só pra citar alguns, estes espetáculos possuem um elenco majoritariamente negro e abordam temas referentes a afrobrasilidade.

Os diretores que lidam com a temática centrada na cultura africana e afro brasileira geralmente são tidos como radicais, polêmicos, chatos, difíceis. Esse seu viés dentro da cultura africana incomodou gente na Escola de Teatro da UFBA e seu arquétipo obviamente eurocentrado? Por quê?
Nada nunca foi claro, tudo sempre sutil, um racismo camuflado por comentários jocosos tipo: Menina monta um texto pronto consagrado construir uma dramaturgia dá muito trabalho... Se formos analisar o conceito de consagrado já já chegaremos as referências aprovadas pela academia. Tive alguns embates, mas fui uma aluna muito estimulada no que tange a defesa de um discurso, pois na Escola neste período que passei lá a maioria dos alunos diretores entram sem um discurso estético e político, muitos descobrem lá, outros terminam o curso e não sabem o que querem dizer com o teatro. Então uma aluna tão jovem e com um discurso tão forte chocava alguns e estimulava outros. Encontrei grandes parceiros que me instigavam a querer mais e melhor, Marfuz, Marcos Barbosa foram decisivos nesta caminhada.

Em OGUM DEUS E HOMEM, seu último espetáculo, os atores passaram por um intenso processo evidenciado no blog da produção. O quanto foi importante fazer estes rituais para que o projeto desse certo?
Sou capaz de dizer que se não houvesse esses momentos não haveria espetáculo. Faço um teatro calcado no teatro-físico ritual e não dá pra fazer de conta o ator tem que sentir efetivamente a energia, a atmosfera do candomblé, ouvir os cantos, comer as comidas, ver os Orixás, pra transmutar tudo em arte. Nesse caso tem que subir a montanha pra saber que é alto.

Luiz Marfuz, Fernando Guerreiro, Marcio Meirelles são alguns dos nomes que conseguiram manter o teatro baiano em pé e com qualidade. Mas com o tempo surgem novos talentos. Quem você poderia ressaltar o trabalho como grande promessa do teatro baiano atualmente?
Existem figuras que já estão trabalhando já algum tempo e que me inspiram um exemplo é Ângelo Flávio, outro é Thiago Romero agora como promessa para o teatro baiano eu diria Diego Pinheiro um jovem diretor negro que possui um grupo de investigação cênica, é dramaturgo e recentemente ganhou um prêmio de dramaturgia pela Fapex e está atento as novidades do teatro contemporâneo.

Existe, não só em Salvador, uma diferenciação do teatro “comercial” para o teatro “engajado”, “pura arte” e que é aparentemente consumido por pessoas distintas. Você acredita que esta diferenciação distancia o teatro como um produto a ser consumido como o cinema e a TV, por exemplo?
Não, acho que há espaço pra tudo. O teatro é mais uma possibilidade de entretenimento disponível para a sociedade. O maior barato é que ele seja diverso. È bom saber que existe o teatro do Bando, o de Marfuz, o de Guerreiro, o meu, o da Cia Baiana de Patifaria, todos muito diferentes, mas ainda assim teatro. A classificação só funciona na academia, na vida real o público quer ver bons espetáculos independentemente de ser engajado ou comercial.

O que você ressalta de bom no conhecimento formulado pela academia para um diretor/ator/profissional de teatro que queira prestar vestibular para a área de artes cênicas e quer seguir a estética da cultura afro brasileira?
A academia possibilita o contato direto com a teoria e teóricos que influenciaram o teatro de forma contundente, o fato de se ter contato com a obra de Brecht, Eugênio Barba só pra citar alguns é fabuloso. Mesmo fora da academia você pode conhecer estes teóricos, mas os mecanismos utilizados na academia para a absorção dos conteúdos desses teóricos, as discussões com variados pontos de vista e experiência de diferentes professores estimula entendimento. Algo que você levaria talvez anos pra conhecer e entender sozinho numa pesquisa auto didata, ás vezes a depender do professor você leva um semestre. A quantidade de material disponível o diálogo com um profissional da área que pesquisa este ou aquele teórico e a cima de tudo a reflexão dão a possibilidade de ampliar quantitativamente e qualitativamente a sua percepção. A academia é o lugar privilegiado para o exercício do pensamento, da elucubração, da conjectura. Mas um artista não se forja na academia ele é uma das possibilidades de formação. No que tange a estética da cultura afro brasileira estamos longe de sermos uma presença efetiva. Existe um sistema para nos invisibilizar, é sutil ás vezes sorrateiro, temos que estar atentos Já ouvi de algumas pessoas que o trabalho que faço é catequético no mal sentido, que as pessoas pra conhecerem o candomblé devem ir a uma festa e não ao teatro.
Bom esse tipo de discurso já denota a ignorância e o racismo que muitos expressam quando vêem a nossa cultura colocada no foco. Por isso temos que mais e mais falarmos de nós, dos nossos, sem nenhum pudor, temos que nós mesmos contar a nossa história e impedir que o estrangeiro continue nos estudando e ganhando dinheiro com a nossa cultura. Se alguém tem que falar que sejamos nós mesmos.

3 comentários:

Fernanda Júlia disse...

Adupé Filipe, muito axé pra você, valeu pela oportunidade e é bom saber que mais e mais estamos criando espaços para mostrarmos os nossos talentos, parabéns grande bj.

Filipe Harpo disse...

Prazer foi todo meu Fernanda! Também aprendi muito com suas palavras. Obrigado.

Unknown disse...

gostei mesmo da entrevista! parabens e sucesso ao seu blog.