Thiago Romero em foto de divulgação do espetáculo Exu - A Boca do Universo. o Senhor das Ruas em seu território... Foto Jô Stella |
Nem só de pano branco e
palha da costa vive o Candomblé. Mais uma peça do NATA – Nucleo Afro Brasileiro
de Alagoinhas – estreando em Salvador e a certeza que os universos (sim no plural) das religiões de
matriz africana são muito mais incríveis e possíveis que nossa imaginação, a
tradição turística e os clichês sobre a estética do Candomblé podem abarcar. Em
EXU – A Boca do Universo, a diretora Fernanda Julia, além de contribuir muito
para o teatro baiano com sua forma peculiar de enxergar o universo que trata em
suas montagens, reinventa de forma singular uma reinvenção marginalizada.
Explico: Exu nasceu na
África e lá ele é cultuado em todas as regiões do vasto continente. Com a diáspora
negra, acontecendo por conta do mercado escravocrata europeu, ele foi trazido
para o Brasil no coração dos negros escravizados. Só, que como todo mundo sabe,
estes mesmos negros fizeram algumas/muitas adaptações para sobrevivência de sua
religião. Na dança das cadeiras do “sincretismo” religioso brasileiro, onde cada
santo “também” é um orixá, Exu ganhou o “presente” em representar o demônio cristão.
De geração em geração, esse simbolismo acabou afastando muitos do Senhor dos Caminhos.
O Nata, vem através de
sua nova montagem, participar do grupo de ativistas negros (artistas,
professores, políticos, religiosos) que lutam contra a intolerância religiosa,
reformulando o sentido das religiões de Matriz Africana junto a sociedade e
também transformando o imaginário ruim sobre Exu em algo sobre o que ele é de
verdade.
O VELHO E O NOVO
NATA...
O espetáculo, começa ainda com o sol... |
Estão em Exu traços do
bom e velho Nata. A diretora Fernanda Julia com o tom megalocenico funcional de
sempre. Suas peças são do tamanho das divindades que traz ao palco, é tudo épico e
Fernanda está em um grupo seleto de diretores que conseguem controlar a
grandiosidade e nunca se perder. O trabalho de grupo também mantém características
de gente que cresceu, mas não se perde, basta dar uma passada pelo programa e
ver que os atores passeiam por todas as áreas do espetáculo. Parece comum hoje,
mas nem sempre dá certo no palco. Estranhei no começo que o “ritual” de deixar
as pessoas mais velhas passarem primeiro, para só depois os mais jovens terem
seus lugares no teatro não acontecer... Mas é só reparar direito. Há uma parte
com cadeiras vermelhas feita especialmente para os anciãos. Fernanda é a ÚNICA diretora
que traz este respeito aos mais velhos em suas montagens. Mais uma peça do Nata
onde a música tem um papel fundamental. Arrisco-me a dizer que este é o
primeiro musical de Fernanda Julia. E é do tipo de musicalidade fluida, os
atores não param tudo pra cantar, as canções são falas do espetáculo, dão
continuidade a historia, como todo musical que se preze.
Há também em Exu traços
de um novo Nata. Um grupo mais seletivo em suas escolhas. Com estética apurada,
mantendo um dialogo constante entre artista e publico. O teatro do Nata apesar
de tratar muitas vezes de um tema só, é popular, é para a rua e mesmo feito em
teatro continua popular. Não um popular maquiado, feito por alternativos com
alcunha popularesca, mas algo feito pra mim e para TODOS.
Exu – A Boca do
Universo, faz parte da residência do Nata durante o ano de 2013 no Teatro
Castro Alves. No mais importante território teatral soteropolitano, este grupo
negro, do interior, marca seu conhecimento e sua estética com inúmeros trabalhos
expostos durante todo ano. Espetáculos de repertório, inúmeras oficinas,
intercambio com a Cia Miolo (SP), leitura dramática, sarau de poesia,
experimentos e mostra de filmes, ufa! Com tudo isso, o Nata reinventa também o
seu lugar na cena teatral baiana.
Tanto marca a cena
teatral na Bahia, que acontece com o grupo algo que vi poucas vezes nos teatros
de Salvador. O Nata atrai gente de todos os cantos. Não é o datado publico de
teatro de Salvador e região, aquelas mesmas pessoas... Mas sempre quando vejo o
Nata no palco reparo em sua plateia. Não tem como não reparar! O grupo traz o
publico negro de Salvador (do Axé ou não) para os teatros. Também o publico dos
terreiros está presente, sem medo, sem receios, se faz presente, pois sabe que
verá algo respeitoso nas apresentações. Só vi isso, essa plateia
completamente diferente e sempre com frutos, acontecendo três vezes, desde
quando acompanho teatro... Com o público do Bando de Teatro Olodum, com as
peças da Cia Baiana de Patifaria e os espetáculos de Fernando Guerreiro, dramáticos ou não. Cada um
a seu modo, traz ao teatro, pessoas que nunca viram uma peça ou aquelas que não
fazem do teatro uma constante em suas vidas.
A BOCA
A noite cai e uma das mais belas cenas do espetáculo se inicia... |
Exu tem um texto ágil,
é lírico, mas ao mesmo tempo direto. Muito direto, aliás! Sem rodeios, sem
pudores, nada de bla bla bla, manda o recado na lata, com muito bom humor e
cheio da ironia baiana das ruas, vielas, afinal de contas estamos falando de
Exu. Apesar de tudo ser muito bom e leve (para um Orixá tratado muitas vezes
com tanto peso...) a peça tem no corpo dos atores outro tipo de texto. O corpo
fala, todos nós sabemos disso, mas nem sempre isso é perceptível para além do
processo de ensaio. Nem sempre vira elemento cênico. E nem sempre, quando vira,
é percebido pela plateia. Em Exu, corpo é palavra. Mais do que em qualquer outra
peça de Fernanda.
Os figurinos de Thiago
Romero são um espetáculo a parte. Ele supera seu brilhante trabalho em Ogum
Deus e Homem. Ressalto aqui a minha frase inicial. Nada de pano branco, nada de
palha da costa, nada de clichê! Tudo é muito COLORIDO! E as cores se casam
(friso “se casar” não é combinar... Combinar é tão anos 90 não é? rsrs), cada peça em detalhes incríveis,
referencias do Orixá se misturam nos tecidos. Os Exus vestidos por Tiago são belíssimos.
Fora isso, um ps: Thiago, que também é ator no espetáculo...
feeeeeeeeeeechaaaaaaaaa!!!!! De todos os atores, é o que parece estar mais a
vontade no palco. E sobe e desce, rebola, solta olhares maliciosos, incisivos
ao publico, seduz e ri. Não é a fechação pela fechação, é simplesmente um ator
a vontade com aquilo que apresenta. Na minha opinião é o que encarna o Caminho
com mais naturalidade. A cena de Fabíola Julia também impressiona. Não quero
adentrar nesta cena, pois é uma grata surpresa durante o espetáculo. Singela
sua interpretação sem nada dizer. Lindo demais.
A direção de Fernanda, lírica,
solta, sem nenhum vinculo com o realismo, mas respeitando o espaço entre corpo,
lúdico e texto. Ela respeita o texto, as imagens que constrói e
as palavras recitadas pelos atores se casam de forma prazerosa para quem vê. É bom ver alguém que usa o corpo, se afasta da estética realista, mas respeita as palavras ditas ao publico.
A trilha de Jarbas
Bittencourt é um animo. Com letras dele e de Daniel Arcades (co autor do texto
e ator tmb do espetáculo) o universo de Exu é elevado em todas as canções. É um
musical, o numero de canções é grande, mas em nenhum momento elas enjoam.
Outro ponto é o grupo de atores em si: Exu tem elementos fortíssimos de Teatro Narrativo... E...Não é sempre que vejo atores bons recitando histórias a ponto de prender o público. Pra falar a verdade, nunca mais vi isso... Desde sei lá... Sete Ventos!...
Outro ponto é o grupo de atores em si: Exu tem elementos fortíssimos de Teatro Narrativo... E...Não é sempre que vejo atores bons recitando histórias a ponto de prender o público. Pra falar a verdade, nunca mais vi isso... Desde sei lá... Sete Ventos!...
A única coisa que
atrapalha é o vento. Um efeito da natureza que o grupo não pode controlar. Em momentos
o vento surge como algo maravilhoso, como na cena onde Fabíola Julia se destaca
(roendo as unhas para não contar e estragar a surpresa...), mas atrapalha
muitos os microfones. Mas acontece com qualquer evento ao ar livre.
ENFIM...
O cenário, com Ele ao centro de tudo |
Exu – A Boca do
Universo chega ao TCA para revolucionar. O cartaz, gigantesco, disposto, na
entrada do teatro, com o nome do Orixá mais marginalizado, enorme para todo
mundo no Centro da cidade ver, já é um aviso, naquele espaço não reside um
espetáculo qualquer. A nova peça de Fernanda Julia curiosamente é a que mais
dialoga com o publico, mesmo essa sendo uma característica forte em seus outros
espetáculos. Mas pensando bem, é natural dessa ser a que mais mantém um
papo com o publico e faz ele se sentir inteiramente à vontade... Estamos falando
de Exu ora! O Senhor dos Caminhos, o que protege as ruas, o primeiro, o que viu
o homem nascer, ser criado, acontecer, ele é Vida... E é o que está perto
dos homens. Extremamente natural nós homens, depois de nos afastarmos das más
visões, nos acostumarmos com suas historias, sorrir, se emocionar... Pois Exu
está em mim. Está em você!
foto: Andrea Magnoni |