sábado, 12 de junho de 2010

Quincas Berro d'Água

Assistindo dia desses ao filme Quincas Berro D’Água, filme nacional recém chegado aos cinemas e que está fazendo sucesso nas salas do país, dei-me conta de mensagens subliminares que às vezes o cinema traduz na sua cara, mas elas continuam sendo subliminares para alguns, mesmo com todo aquele contexto sendo traduzido em imagens que você não pode deixar de ver.

Pense junto comigo. Todo conhecimento cientifico tem como objetivo virar censo comum, tipo de conhecimento tido como vulgar e prático que no dia-a-dia orientamos as nossas ações e damos rumo a nossa vida. O que é produzido pelos cientistas é feito para chegar de alguma forma (para o bem e também para o mal) a população leiga. Essa é uma das características da ciência atual de um novo paradigma que emergiu lá pelo começo dos anos 80 e, mesmo encontrando barreiras, se mantém hoje nas universidades. É algo produzido para ser libertador, tentando livrar a ciência da exclusão que antes acontecia em larga escala. Mas engana-se que a “lei” formulada acima foi introduzida somente nos últimos anos do século XX. O objetivo da ciência em traduzir-se em censo comum já é costume desde muito tempo e um desses exemplos é a propagação do racismo na cabeça de cada um de nós.

E chega de uma forma que você não repara, pois ele é dissolvido na mídia, literatura, revistas, comerciais de TV, filmes, música, fotografia, pintura. Pega você no momento mais frágil, em que você está pensando em nada e os códigos que ele quer revelar podem entrar na sua cabeça sem problema algum. Estou conspirando demais? Não mesmo!

O filme Quincas Berro D’água, que foi inspirado no livro A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água do escritor Jorge Amado, mostra uma Bahia, mais precisamente a cidade de Salvador, da forma peculiar como Jorge Amado sempre esteve disposto a vender. Salvador é uma cidade dividida. Uma parte, organizada, limpa, bonita e sem graça, é neste lugar que geralmente vivem o povo branco, que constituem na maioria, a burguesia da cidade com seus comerciantes, funcionários públicos, políticos e afins. A outra é uma Salvador suja, feia, desvairada, escura, periférica, recanto da boemia, da sacanagem, da descaração, roubalheira, onde residem a maioria dos personagens de Jorge, marinheiros, prostitutas, meninos de rua, moleques de recado, devotos do candomblé, bêbados, sambistas, dentre outros, na sua maioria negros.

E é curioso reparar como Jorge Amado vê a sua cidade. A Salvador suja é onde os negros e mestiços moram e esse povo em particular é louco, maltrapilho, bêbado, vigarista, que gosta de sexo, cachaça e vadiagem mais do que qualquer outra coisa. Repare, por exemplo, no delegado feito por Milton Gonçalves (sempre ótimo por sinal) e nas pérolas que ele solta. Já a cidade habitada pelos brancos é frustrada, católica, moralista e se desloca para a outra cidade pra se divertir e extravasar, na manhã seguinte retornando para o conforto do seu lar na cidade frustrada. Bom também é reparar que Quincas e Jorge Amado muito se parecem, já que o mesmo sujeito que freqüentava os puteiros da Montanha, beberitava com os marinheiros, freqüentava os candomblés nos subúrbios de Salvador era o mesmo que tinha ótimas relações com a elite da cidade e recebia gente como Sartre e Simone de Beauvoir em casa.

E o cineasta Sérgio Machado traduz a linguagem de Jorge Amado diretinho pro cinema. Estão lá os bêbados, a negra baixo astral violenta, mas que já fez homem morrer por conta do seu “rabão”, os mestiços desengonçados, as prostitutas, os travestis, os negros maltrapilhos e os brancos que se infiltram naquele mundo louco, mas quando amanhecer e tudo voltar ao normal, vão retornar para casa sem nem olhar para trás. E o filme faz isso tudo de forma muito bem feita. Não tem um ator ruim. A maioria é baiano e pra quem anda vendo as peças e programas de TV da Bahia, dos últimos dez anos vai reconhecer meio mundo de gente. Os globais também estão em ótima forma, Marieta Severo como sempre arrasando, Mariana Ximenes ótima, Milton Gonçalves interpreta como ninguém e Paulo José, que merece aplausos de pé e muitos prêmios por este papel – o homem esta lutando contra o mal de Alzheimer atuando e da melhor maneira possível exibindo energia máxima. Que continue assim! Além do elenco ótimo, o diretor Sérgio Machado (o mesmo de Cidade Baixa) parece não ter culpa de construir cinema comercial no Brasil. E isso é ótimo! O filme é comercial mesmo, não tem intuito de ser em nenhum momento filme de arte intelectualoide e isso no Brasil é ótimo por que a maioria dos cineastas tem medo, pois traduzem “comercial” congruente a produto mal feito de Hollywood.

E o filme corre bem feito, fazendo (muita) graça para o público que se diverte aos montes e come o racismo de Jorge sem problema algum. A mensagem está ali, subliminar. Principalmente na teoria da mestiçagem benéfica, celebrada em todos os livros de Amado, um discípulo óbvio de Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Holanda . Aquela onda que todos nós nos misturamos, que aqui no Brasil não tem racismo por que o branco, o negro, o índio se resolvem, nem que este lugar seja na cama. Repare que o filme todo coloca uma Salvador que é separada, mesmo os personagens que habitam ela vivendo juntos, mas que esta separação é resolvida no final com uma boa foda! E é por conta disso que volto novamente ao conceito lá de cima, que o racismo foi algo formulado pelo conhecimento cientifico que se espalhou pelo censo comum. Ele se prolifera pela nossa cabeça e nós (brancos e negros) o espalhamos atualmente sem às vezes nem reparar no que estamos fazendo. Ate por que ele está em tudo quanto é lugar. Até quando você vai a um cinema assistir a um filme de um morto que não morreu direito...

3 comentários:

Marlo (The Batman) disse...

Sexta passada, estávamos debatendo cinema em uma aula e um aluno soltou a pérola: "cinema nacional, só falo mal!" Claro que ele foi massacrado por mim e pelos colegas, que lhe expuseram o óbvio: a gente deve falar mal de filme ruim, seja ele de onde for.

Não deixa de ser incômoda, porém, esta opção do cinema nacional pela miséria material. Sou da opinião de que existem, sim, boas histórias a ser contadas em qualquer lugar - inclusive na Salvador "limpa e sem graça" das áreas ditas nobres a que você se refere. O que falta é alguém pra contá-las.

Fico feliz que se tenha usado um elenco nativo. O supostamente baiano sotaque de boa parte das produções globais é vexatório. "Ó Paí Ó" já provou que é melhor investir em autenticidade.

E, meu filho, se o sexo é capaz de amansar as tensões raciais, ao menos durante o tempo de uma boa trepada, então, viva o sexo!

Abraço e obrigado pelas visitas! =)

Naiana Sundjata disse...

Só que fomos e continuamos indo além das trepadas! E tome cuidado, pq numa trepada dessa vc pode morrer com o orgasmo! rs
VIVA AS TREPADAS.

Valeu.

Caio. disse...

O sexo é capaz de amansar as tensões raciais. Durante o tempo de uma boa trepada somos iguais, os negros fodem com os brancos na cama... E os brancos com os negros quando a tal trepada acabar...

Caio.