segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

E quando o racismo vem de dentro de casa?

Quando tive os meus primeiros contatos com referências que para mim hoje parecem tão comuns como Fanon, Sudbury, Abdias do Nascimento, Ari Lima entre outros, comecei a me relacionar com um novo mundo negro. Neste mundo eu me olhava no espelho e sentia orgulho de mim mesmo. Olhava para meu cabelo e reparava que o que antes achava feio agora belo era arquitetado na minha cabeça. Por dentro, as mudanças também continuavam, sorria mais, passei a não dar valor aos meus medos, descobri dentro de mim um curioso que há tempos havia perdido, pois o mundo que vivia era chato demais... Além de achar meu cabelo, minha pele, meu nariz, belos, de descobrir minha cultura, eu por dentro hoje sou outro, devido aos autores que descobri e por algumas pessoas que encontrei pelo caminho.
Esses encontros, além de servirem como reformulação do meu ser, possibilitaram também me defender do mundo e de sua opressão. Não estou querendo pronunciar o meu papel de vitima na sociedade, mas sei que o racismo formulado/inventado por brancos séculos atrás – e ainda usado por estes no século atual – tem força hoje e sua extinção é um trabalho de anos e de complicado aparato. Todo negro precisa se defender contra o racismo! Conhecer a si mesmo é o primeiro caminho. Não adianta querer fazer revolução lá fora se dentro de casa está tudo virado de cabeça pra baixo. O racismo não só tira seu emprego. O racismo enlouquece, humilha, ridiculariza, afasta voce de si mesmo... É uma invenção poderosa, inteligente e que todos nós negros precisamos ganhar algum tempo do nosso dia-a-dia aprendendo a nos defender.
E com o tempo e a experiência acabamos ganhando esta auto confiança e informações valiosíssimas contra o racismo. Ficamos fortes, com orgulho maior que nosso cabelo, ele agora cresce sem problemas e dentro de uma auto estima consciente. O mundo pode vir quente, a gente não se importa. Aos poucos, nos preparamos para saber onde meter o nosso pé, com quem andar, o que falar na hora em que ouvir certos tipos de absurdo. O racismo não vai deixar de existir por que voce está preparado, ele vem bem mais forte que voce pensa, mas as armas estão perto, as referências estão aí, para que você as use e se defenda.
Mas isso é com o mundo! E o outro mundo? O de dentro de casa? Quando o racismo te atinge dentro de casa? Com seus irmãos, seu pai, sua mãe, seus primos, tias, enfim sua família? O que você faz? Carrega a metralhadora e sai atirando para todos os lados com os argumentos intensos para os de fora, que são estranhos, estão presente em congressos, onde você disputa retórica, ou processa por discriminação? O povo de casa é tratado por você como o povo da rua?
Comigo não. Para mim o caso dentro de casa é extremamente diferente. Primeiro que não estou lhe dando com um estranho, é alguém que cuidou de mim, que me dá carinho, que briga comigo pelo meu bem e que tem a seu favor todo arcabouço da cultura “familiar” construída em torno de séculos e séculos ao seu lado. “Respeite seu pai!” ou “Com família a gente não faz assim desse jeito...”. Não é militância, é dentro de casa. Não é seu colega racista no trabalho, é seu irmão com signos racistas contra você. E ai, vai sair metendo a porra em todo mundo?...
Venho de uma família negra, com suas várias tonalidades de peles escuras, mas com alma ferozmente colonizada. Aliás, ferozmente só não. Como o racismo aprende subterfúgios para existir plenamente, acaba sendo “evidenciado” através de brincadeiras, sorrisos, no meio daquele churrasco de Domingo familiar. E é um tal de rir do seu cabelo, de abrir debate no meio do almoço sobre o crescimento do cabelo de fulano e beltrano, de chamar filho de macaco, ou de “vermelhinho cor de formiga”, de brincar com o nariz do outro, de não aceitar o namorado da irmã que é mais escuro que ela. Muita dessas coisas aconteceram na minha família e pode acontecer/aconteceu na sua e na de muitos outros negros...
O racismo para mim é inteligente por conta deste ponto; ele não precisa do outro para ser efetivado! Ele não precisa do branco, nós mesmos aprendemos com os valores coloniais, anos e anos atrás, a nos violentar e passar isso de geração em geração. Até chegar na sala de jantar de sua casa com sua tia dando um valor danado ao namorado branco que sua irmã arranjou, falando dos olhos deles, do porte, da beleza e distinguindo, de forma peculiar, a sua namorada com aquele cabelo diferente... “Por que ela não corta? Ela é tão bonita!...”
Neste ponto não adianta. As referencias que voce leu, releu, na hora não servem para nada. Por que o nervoso ataca. Como compreender que as pessoas que vivem contigo e te amam acabam dizendo frases do tipo “Voce agora só fala de negro” te transformando em um chato ininterrupto, ou “Tá na moda usar essa desgraça desse cabelo assim dessa forma né?”, “Vem macaco comer!”... E por aí vai. Nós negros aprendemos a nos estraçalhar e fazer isso vez por outra na esportiva... Com brilho nos olhos... A violência entra como um vampiro na sua casa e logo lá onde você pode se recuperar das atrocidades do mundo externo, voce é violentado também.
É preciso muita paciência! MUITA PACIENCIA! Pois este contato, das festas, da alegria, da reunião, do amor, que é próprio da cultura negra, de dar valor extremo ao coletivo, pode estar em jogo nestas horas. Toda família negra faz práticas que são próprias da cultura herdada dos valores africanos. Muitas e muitas vezes faz isso sem a mínima consciência, sem conhecimento de onde aquele gesto vem etc. O valor tão preciso e único de conhecer a si mesmo, que chamei atenção lá em cima, aqui faz uma diferença enorme. Como um tio seu que acha o cabelo dele ruim, horrível, - por que aprendeu isso – pode achar bonito o seu cabelo? Como ele vai compreender, ele não é neto de escravo e sim de negros escravizados? Como?
Conheço um monte de amigos meus que hoje não tem mais paciência com a família. Quando o assunto é racismo atam as mãos, pois cansaram. Cada um faz o que quiser da própria vida. Aqui em casa consegui ter um papo com os meus e aprendi que não era só eu que tinha a ensinar, pois com a abertura do diálogo eles me ensinaram muito. O movimento negro na minha vida não esteve fora de casa, o Movimento Negro pra mim é a MINHA casa! Sei que com as pessoas mais velhas é bem mais difícil este tipo de coisa. Elas já tem opinião formada, estão em um estágio da vida que querem aproveitar das conclusões que tiram e não muito de reformular conceitos. Outra coisa é que o racismo às vezes entra e nunca mais sai, infelizmente, da cabeça de um ser negro. Acorde, viu?! É uma realidade! Alguns são tão bons alunos que chegam a defender certos tipos de práticas que são intrínsecas e o racismo “institucionalizado”, aquele que bate na cara sem perdão, faz ele emudecer.
Concordo em gênero numero e grau quando Bell Hooks em um de seus textos diz para que nós negros nos amarmos. O amor é a base fundamental de tudo nesta vida. E por conta dessa falta de amor próprio, de referências sobre si mesmo, desse nosso eu que a nós foi tanto negado e escondido, estamos nos exterminando e só duramos gerações e gerações, pois somos teimosos! Viver para rancar a brancura colonialista que existe dentro de nós. A família, em um ceio negro, é a base de toda a força. Não estou dizendo aqui que nas famílias de outras raças e culturas não exista esta força, mas falo dos meus, pois os meus eu conheço muito bem. Os livros na nossa cultura falam sobre agrupamento sempre, o candomblé é uma família (irmã de santo, mãe de santo... lembra?), as músicas remetem reuniões familiares, os nossos amigos são nossos irmãos. Tenho certeza que aprendemos por conta do processo de colonização racista (redundante não???? rsrs) a nos violentar, mas ao mesmo tempo a aproveitar nossa força para sermos uma nova família. É só lembrar da historia do Brasil onde famílias negras inteiras eram separadas. Um irmão ia pra o sul da Bahia, a mãe fica em Salvador, seu marido no recôncavo e sua filha ia parar no Rio de Janeiro talvez... Mas os negros escravizados acabaram por se reformular e ver que também poderiam se proteger, se familiarizar, e se juntaram formando novos ceios familiares... Acho que pode ser daí também que vem essa coisa da gente se agrupar de forma tão fácil com povos negros de outra parte do mundo, de gente preta do Rio grande do Sul se dar bem com a gente, de conhecer a negona que mora no Maranhão e veio passar férias em Salvador e tratá-la como irmã. A pele negra compartilha caro leitor. Sempre!

7 comentários:

Braulio da Bahia disse...

Parabens , um dos textos seus que eu mais gostei.

Anônimo disse...

Meu amigo, seu texto ta perfeito.Com desculpa do termo, mais vc brocou dessa vez.
Parabens e Sucesso

Joelson

Unknown disse...

Há pouco tempo que conheço o pelicula negra,estou amando td isso,vc escreve muito bem,embasado em referências,me representa por está na tríade mulher-negra-pobre
então parabéns!!!
Èrica Mendes.

Ivan Vaz disse...

Uow. Fantástico. Parabens irmão. texto extremamente verdadeiro e cheio de conteúdo.

Anônimo disse...

Muito legal o texto. Me lembrou um texto do Cuti, o Batizado, que retrata bem esse conflito intrafamiliar.
Concordo que o caminho é nos amarmos.

Axé!

Bantu

Filipe Harpo disse...

Obrigado a todos pelas visitas e pelos comentários!!!!!!!! Abração galera

Unknown disse...

Filipe mais que felicita lhe por seu tao bem elaborado texto. A sua escrita nos faz refletir oque Representa o aprendizado no seio da familia negra brasileira. Por via de regra e ai onde supostamente aprendemos quem somos. Mas infelizmente nossos pais nao podem encinarnos aquilo que eles mesmo nao aprenderam. Foi oque o autor chamou de "racismos institucionalizado" o seu texto ajuda a quebrar a corrente.

Manolo DaSilva
Los Angeles, CALIFORNIA