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Poster/Convite do curta Pode Me Chamar de Nadi |
Você estudou
e começou a fazer seus curtas nos EUA. The Letter, um de seus primeiros
trabalhos, já tratava da questão racial. Qual a diferença em tratar de racismo
nos EUA e aqui no Brasil?
The
Letter foi o primeiro
filme que escrevi, produzi e dirigi na vida. Fiz esse filme nos Estados Unidos.
Um filme em preto e branco, em película 16mm, realizado no clima da invasão
americana ao Iraque. Um curta de 7 minutos, numa época que eu estava sendo
apresentado à prática do cinema. Então, assim como na vida, quem tá começando
acaba meio que imitando o estilo de alguém que você admira. É assim em todos os
aspectos da vida. Você não é maduro o suficiente pra ‘caminhar com as próprias
pernas’ e busca referências. A minha, à época, estando nos Estados Unidos, era
buscar uma brasilidade na maneira de fazer cinema.
E bebi na fonte do cinema-novo, principalmente de Glauber Rocha. Me senti na
obrigação de apresentar o Brasil aos americanos através do cinema novo. Então
fiz um filme de câmera na mão, no meio da rua, passando a centímetros do rosto
do protagonista, um soldado negro americano que se despedia da esposa (também
negra) pra ser aquartelado, rumo ao Iraque. Era um filme sem diálogo, que
buscava refletir tanto aquele absurdo da guerra, quanto do dilema dos negros em
terem que ir à uma guerra de interesses brancos. Um jazz audiovisual, com colagens em áudio
da voz de George Bush gritando repetidamente “nós vamos vencer o terror, a
America vai prevalecer”, como um remix de Rap, enquanto a câmera avançava no
rosto do protagonista enquanto este caminhava na rua.
O professor demorou muito a entender minha proposta. Era tudo muito novo pra
ele e ele sabia muito pouco de cinema novo. O dialogo com os Afro-americanos
foi imediato. O filme gerou muito debate entre negros e brancos. Muitos deles
acalorados, e assim fiquei conhecido ali no mestrado como um cara que gostava
de tocar o dedo na ferida. Fui convidado a fazer parte do Hip-Hop Congress, uma organização afro-americana, de
negros para negros, que realizava projetos socioculturais em comunidades negras
através do hip-hop e da cultura urbana. Ali aprendi muito e foi a época
que eu mais militei na causa negra mesmo. Tínhamos palestras com pessoas que
fizeram parte dos Panteras Negras, e de outros movimentos de militância negra,
enfim. Comecei a fazer dessa causa a minha missão, sempre procurando também
ampliar o debate para a opressão não só contra negros, mas contra outros povos
historicamente oprimidos também, legado deixado pela política dos Panteras
Negras.
Voltando ao Brasil, busquei militar no hip-hop também. Minhas experiências no
movimento negro brasileiro não foi tão militante porque aqui eu precisava
correr atrás de estudos e meios de sobrevivência. Percebi também que eu não
levo jeito pra militância intensa e politizada nas ruas, e procurei compensar
essa minha falta de habilidade fazendo uma militância mais artística, através
do meu cinema.
Então, quando faço um filme militante nos Estados Unidos, a reação é um pouco
de surpresa e encantamento, por eu ser um Afro-Brasileiro-Americano. Ao ver uma
obra, eles procuram compreender a legitimidade daquilo, de quem fez a obra. Se
o realizador fez por estar inserido no contexto, ou se o realizador é um outsider, como eles dizem, ou
seja, se caiu de paraquedas e tá tentando se aproveitar de um tema que não é de
seu domínio. Ao verem meus filmes, a discussão do tema nas mostras era de igual
pra igual. Analisado num contexto geral. E sempre resvalava pra questão de como
era o contexto racial brasileiro.
Aqui no Brasil, no circulo de festivais, das poucas vezes que participei,
percebi muito tapinha nas costas de um público geral, e pouco debate. Já quando
nosso povo está na plateia, percebo mais o interesse pelo debate e é justamente
isso que me alegra. O debate é parte essencial da evolução intelectual e
percebo que nós, brasileiros, temos muita dificuldade em debater sem levar pro
lado pessoal. Atribuo isso à ditadura militar, e às opressões de nossa
história, que nos tirou a prática do debate e da divergência de ideias.
O que você acha do cinema
no Brasil hoje feito como se fosse televisão? Onde o filme de hoje é o novo
Especial de Fim de Ano, ou da série de sucesso transformada em filme com
“simples” toque de edição?
Como
eu disse anteriormente, esse cinema contaminado pela estética televisiva é
aquele cinema que prefere não se arriscar pra não perder público. Há quem
discorde profundamente dessa teoria. Daniel Filho, um dos poderosos autores da
Globo, afirmou uma vez que não existe uma estética televisiva e outra
cinematográfica. Tudo se contamina. Concordo em partes com ele, por que de
fato, se você for ver um filme como “De Pernas pro Ar”, aquilo parece uma
extensão do que é feito na TV, uma produção tecnicamente conservadora: uma luz
padronizada, uma abordagem cênica que começa do Plano Geral ao Closeup, enfim, uma produção que não se
arrisca e que proporciona essa impressão de que aquilo que é cinema de verdade.
Deixa o público mal-acostumado, viciado a esse tipo de produção. E dá-lhe
filmes que viram seriados, festivais nacionais de madrugada que quase sempre
mostram filmes da Globofilmes, etc. Ainda bem que a internet chegou pra dar uma
sacudida nisso.
Recentemente,
Ângela Davis, esteve no Brasil no Festival Latinidades Afro Latinas 2014 e fez
um alerta criticando a presença de negros no poder: "Não
significa somente trazer pessoas negras para a esfera do poder, mas garantir
que essas pessoas vão romper com os espaços de poder e não simplesmente se
encaixar nesses espaços" afirmou. Quem comanda MESMO um filme é a tríade:
roteirista – produtor (a) – diretor (a). Falar sobre racismo em meios de
produção hoje é tranquilo ou ainda significa tema tabu entre aqueles que
comandam uma produção?
Angela
Davis é uma diva. E mais uma vez nossa diva-guerreira está certíssima. Trata-se
de um tema extremamente tabu, também dentro do ambiente cinematográfico e de
produção audiovisual brasileira. Por exemplo, em 2011 fiz assistência de
direção do longa-metragem “As
Mães de Chico Xavier”, estrelado
por Caio Blat, Vanessa Gerbeli e Herson Capri, e dirigido pelos grandes amigos
Glauber Filho e Halder Gomes. No filme, em determinada cena improvisada,
precisavam de um engraxate pra limpar o sapato do protagonista, já que o filme
se passava nos anos 1980. Aí pessoas da produção escolheram um colega da equipe
que era motorista. Tanta gente pra escolher, e escolheram justamente ele, que
tinha a pele mais escura da equipe. E eu rapidamente levei minha insatisfação à
assistente que tinha escolhido ele. Perguntei: “sei que toda e qualquer
profissão honesta é digna, mas porquê, necessariamente, o engraxate tem que ser
negro?” E houve o inicio de um pequeno celeuma.
Então, se você chegar num set de filmagens de uma equipe profissional de cinema
no Brasil, você vai ver que as funções mais importantes, as de maior poder
hierárquico, reflete a realidade socioeconômica, ou seja, quanto mais braçal o
cargo, mais escuro é o profissional desse cargo. Agora vai falar sobre isso pra
você ver o desconforto que você causa! Dão logo a entender que o racismo está
nos olhos de quem vê. É uma questão muito preocupante. O fato é que temos muito
pouco autores(as)-cineastas negros e negras. E quando falo de
autores(as)-cineastas, me refiro a roteiristas, produtores, realizadores e
diretores de fotografia – posições de maior destaque.
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Cappuccino Com Canela, outro curta de Deo Cardoso, também disponível no You Tube |
Por que o
cinema feito no Brasil não se arrisca tanto em gêneros como ficção cientifica,
terror, fantasia... O que nos falta para avançar nesse quesito? Dinheiro?
Material? Público?...
Acontece que,
como temos uma tradição polarizada entre a reflexão social (influenciada pelo
neo-realismo italiano e consagrado pelo pessoal do cinema novo) e uma tradição
cômica dentro de um padrão industrial (que vem desde os tempos da chanchada
passando pela pornochanchada). Nunca tivemos uma estrutura econômica e
industrial que nos permitisse, enquanto cinematografia, investir em certos
estilos, como ação e aventura, por exemplo.
É como se a gente fosse fazer filmes de gênero pra competir contra quem já é mestre
nessa técnica, certo cinema pirotécnico americano que ostenta efeitos especiais
por um lado e que, por outro, apresenta uma narrativa extremamente limitada e
engessada em sua estrutura.
Então, nossa tradição cinematográfica meio que não nos permite competir com
Hollywood. Nosso cinema tem uma tradição mais voltada pra Europa e, por
conseguinte, à nossa própria formação cinematográfica latino-americana. Aquela
coisa combativa, de gritar ao mundo que somos inovadores em nossa própria
maneira de se contar uma história, visando formação de plateia ou mesmo a um
publico cativo. Nossa tradição comercial é o melodrama, desde os tempos dos
estúdios da Cinédia (de Adhemar Gonzaga e Humberto Mauro, nos anos 1930), que
flertava com os melodramas das radionovelas, e também as comédias populares e
carnavalescas, frutos de nossa rica tradição cômica, que remonta a antes mesmo
da chanchada (gênero cinematográfico genuinamente brasileiro, desenvolvido nos
estúdios da Vera Cruz e da Atlantida na década de 1940/50). Nosso cinema
reflete, ri ou avacalha a nossa própria condição social e política.
Somente nas experiências tresloucadas do cinema marginal brasileiro,
arriscávamos a fazer filmes de gênero assumidamente toscos, muito mais pra
tirar uma onda do que propriamente um filme de gênero (o terror de Zé do
Caixão, uma ficção científica de Carlos Manga, etc). Ao longo da historia
do cinema brasileiro, já se fez inúmeros filmes de ficção cientifica, por
exemplo, mas sempre nesse viés cômico.
No curta
Sonhos Interrompidos você dá um depoimento em que cita “outras formas de
solucionar problemas” contra a violência. O cinema, ou a arte em geral, poderia
ser uma das fontes de solução?
Sem
dúvida. O cinema, a arte em geral, faz parte de um capital-cultural
importantíssimo pro nosso povo. Temos que aprender a gerir isso. A criar nossos
espaços, nossos festivais, nossos circuitos de dança, de teatro, de cinema,
espetáculos em geral. Temos que nos consumir mais nesse sentido. Tanto como
criadores quanto como gerentes disso tudo. Pensar, criar, consumir.
Em “Sonhos Interrompidos”, temos o retorno de Nadí, num tom mais documental.
Foi um filme encomendado pelos membros de um atuante grupo negro militante,
aqui de Fortaleza, chamado “Consciência Negra em Movimento”. Um grupo de pretos
e pretas atuantes e inteligentes, que estão firmes e fortes na luta contra o
racismo. Me procuraram e pensamos esse trabalho juntos, numa mesa de
restaurante. Chamamos algumas pessoas e eu escrevi e dirigi aquilo que o grupo
todo idealizou. Só que a coisa tava pesada demais na edição, e optei por uma
edição mais positiva da coisa, ao invés do tom derrotista que estava.
Nem fiz muita publicação desse trabalho porque o vídeo infelizmente gerou uma
polêmica dentro do grupo. Até hoje não sei se ficaram insatisfeitos com a
edição do vídeo em si ou pelo fato de que eu, desavisado, publiquei o vídeo no
youtube, sem saber que eu precisava pedir permissão ao grupo. Pode ter sido um
misto dos dois. Gerou certo mal-estar, mas foi coisa de momento. Tô de
boa. Tratam-se de pessoas articuladas e bacanas. A vida é assim mesmo.
Nem sempre agradamos a todo mundo. Divergências são comuns em qualquer grupo ou
família. Por mais que hajam divergências, o que importa é o respeito. O
mais importante é que a mensagem chegue até as pessoas. Nossa produção já é tão
tímida ainda, né?! A produção de cinema negro (documentários, curtas, longas,
etc) já é tão escassa, tão complicada, que eu acho que quanto mais for
publicado e exibido, melhor. Precisamos de mais produção de nossos filmes,
romances, livros acadêmicos, espetáculos, poemas... mais debates, mais
opiniões, mais pontos de vista. Precisamos
criar mais espaço pra nós mesmos(as), né não?!
Curioso o
movimento que alguns cineastas tem com a música e a influencia dela em seus
trabalhos. Wood Allen, Kubrick, Scorsese, Sofia Copolla, Scheffer, Spike Lee
são alguns que trabalham a partir da musica. Em minhas pesquisas, vi que você
tem uma relação muito próxima ao rap. Qual a influencia que ele exerce em seu
cinema?
Eu e o rap somos “amigos” de longa data. Tenho 37
anos, mais ou menos a faixa etária do hip-hop. Nasci nos Estados Unidos em
1976, porém, filho de pais nordestinos. Nos anos 1980, quando eu vivia em
Raleigh, Carolina do Norte, a música que eu ouvia em casa era Luiz Gonzaga,
Gilberto Gil, Chico Buarque, etc. Na rua e nos ônibus escolares, o que eu ouvia
era Public-Enemy, Fat Boys, Run DMC, 2 Live Crew, De La Soul, Michael Jackson,
etc. Então isso tudo fez muito a minha cabeça.
A gente respirava rap, em sua fase mais contestadora. Os
caras passavam a ideia certa. Noções de luta, de arte engajada. Aprendi a
desenhar por causa dos grafites que eu admirava. Escrevia letras de rap em
forma de poemas, e até hoje sonho em gravar um rap. Nem que seja por desencargo de
consciência, porque talento eu não tenho NENHUM! hahaha.
Então, procuro estruturar meus filmes de forma ritmada como um rap audiovisual,
seja cadenciado, seja acelerado, mas sem necessariamente usar rap como trilha sonora. Posso estar
enganado, mas que eu me lembre, dos mais de 4 filmes/curtas que realizei, nunca
usei trilha de rap em nenhum, a não ser nos créditos
finais de Pode Me Chamar de
Nadí, que usei aquela musica linda do Rappin Hood “Us Guerreiro”, que fala
muito da nossa condição enquanto afro-brasileiros.
Então, o dialogo entre a forma como faço filmes e o rap está lá, “vivão e vivendo”, como se
diz. E foi através do rap que cheguei a gostar de jazz, e de soul. Mas não só o rap faz parte dessa minha salada de
influências, o samba e o afoxé são ritmos que me encantam demais também.
Brincando
nos Campos do Senhor, Pixote e Cidade de Deus ficaram famosos no mundo inteiro
por usarem atores amadores ou não atores. Vi que você gosta também de usar esse
tipo de ferramenta. Quais são os prós e os contras de usar essa técnica tão
adotada por cineastas?
No
esquema de produção de filmes que eu adoto, vejo muito mais prós do que
contras. Explico: meu esquema de produção é urgente. Filmes-crônicas. O
realismo é latente. O naturalismo é essencial. A influencia do cinema
documentário é viva demais nos filmes que faço. E o cinema, ao contrario do
teatro, tem esse poder de absorver e dar significado ao mínimo movimento de uma
pessoa. Um franzido de testa gera um significado. Um olhar torto, outro
significado. Se o ator ta nervoso, por mais que ele dissimule, a câmera vai
captar.
Não gosto de caras e bocas e nem de caricaturas. Gosto da tensão que um
ator ou atriz amador(a) traz consigo diante de determinada situação. Por isso
que eu geralmente ensaio, faço exercícios cênicos, sempre baseado em
improvisos, pra não mecanizar o ator ou atriz. Esse ator ou atriz me ajuda a
construir a personagem. Cria junto comigo. A relação é ótima. Uso exercícios do
grande dramaturgo Augusto Boal e da teatróloga americana Viola Spolin. Pessoas
que extraiam a maior naturalidade dos atores e atrizes sem técnica.
Claro que existem contras. Gente que trava na hora, essas coisas. Mas tudo é
uma questão que precisa ser bem trabalhada nos ensaios. Até hoje não tive
problemas maiores. Nunca trabalhei com atores profissionais famosos. Espero
também trabalhar com atores e atrizes que admiro muito, como Lázaro Ramos,
Neuza Borges (com quem tive o prazer de conviver em um trabalho), Antonio
Pompeu, Cosme dos Santos, Sheron Menezes, Jonathan Haagensen... e um sonho
especial de um dia trabalhar com Zezé Mota.
Pergunta
final: Você se declara um cineasta ou um cineasta negro? E por quê...
Sou tímido,
mas quando me perguntam como quero ser apresentado, sempre me declaro um
cineasta negro. Pensa bem, já somos tão poucos né?! E nossas maninhas negras
realizando filmes são tão poucas também, que acho extremamente importante essa
declaração como afirmação mesmo, sabe. É como a resposta no censo do IBGE. É
importantíssimo se declarar negro ou negra. É como se eu dissesse: nós
existimos nesse meio. Nós existimos enquanto autores(as), criadores(as),
doutores(as), engenheiros(as), etc. É importante pra dar visibilidade. Mais
importante e fundamental ainda pra causar impacto e consciência politica e
racial pra molecada.
Porque na
verdade quando você se declara negro, ou negra, dependendo da ocasião, causa
certo estranhamento, certo mal-estar. E isso acaba abrindo espaço para debate.
E aí, quando você justifica e chama pra si a negritude, você está fomentando
uma consciência de nossa própria condição, de orgulho de nossa herança
africana, de um povo fundamental pra nossa identidade. Ao fazer isso, estamos
invocando Lélia Gonzales, Stuart Hall, Carolina de Jesus, Bob Marley, James
Baldwin, Frantz Fanon, Amilcar Cabral, etc.
O preconceito
ainda é muito grande em nosso país. O racismo é muito grande. Apesar dos
avanços, os negros ainda estão muito associados a empregos baixos, à favela, à
subserviência, ao crime, ao esporte, ao exotismo, enfim, a atividades que não
impliquem a produção intelectual. Se boa parte do nosso povo ainda se encontra
em situação desfavorável, isso se dá por séculos de opressão pré e pós
abolição. Somos um povo guerreiro, de lutas e conquistas. De dor e de dança. E
essa afirmação de nossa negritude é nosso grito de libertação diário. Afinal, o
sorriso no rosto de quem já chorou, consegue ser mais belo que um sorriso
comum.