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Os atores Valécio Santos como Shirley
e Henrique Bandeira como Alberto,
em cena de Transmetrópolis |
Dias atrás, fui provocado por um amigo, sobre um dos pontos – considerados por ele – mornos de Transmetrópolis, meu primeiro espetáculo profissional como diretor e autor. Ele dizia ver minha veia sobre sexualidade presente na peça, mas que meu lado sobre negritude, forte característica que também sou conhecido pelas pessoas, neste primeiro espetáculo da SouDessa Cia de Teatro – que sou fundador e diretor – ele não conseguia enxergar. Fiquei pensando se por ser negro, ter militado um tempo e conhecido alguns movimentos negros por onde passei, tenho mesmo que mostrar que “sou negro!” para todo mundo ver? Não está na cara que Transmetrópolis é um trabalho de um diretor negro? Para a negritude estar presente, ela precisa ser evidenciada na sua cara, muitas vezes de forma panfletária e chata?...
Bem, como não estou nos anos 80 e apitaços e placas de “diga não ao preconceito” para mim não servem de muita coisa... Mostro-me de outras formas. Sim, minha negritude está no espetáculo, achava que só não veria quem não quer... Mas hoje sei que não é bem assim. As referencias as quais construí Transmetropolis são negras. Para falar sobre identidades Stuart Hall (apesar de acharem que sou chegado a teoria queer), para construir o arquétipo de Shirley (personagem principal da trama) estava com a ousadia de Madame Satã na cabeça. Shirley cita Steve Biko. Para fazer Moisés tive como referencia um pastor negro “ex homossexual” que dá cursos sobre como se tornar um hétero. A trama da peça é passada em um bairro periférico de Salvador chamado Pirajá e a religião que domina a periferia e pode até ser considerada como nova religião negra do país (sim isso é uma provocação, pense nisso!!!) são as congregações evangélicas.
Transmetropolis acabou sendo feito – em sua segunda temporada – com um elenco majoritariamente branco. Até um dos atores, Jean Carlos, chamou atenção para isso: “Nossa! Essa periferia está branca demais” em um dos ensaios. Eu realmente não ligo para isso nesta montagem, contanto que a personagem principal fosse feito por um ator/atriz negro (a), para mim tudo bem. Shirley, é quase óbvio, é uma extensão de mim. Muitas coisas que diz sou eu quem digo. Muitas coisas que pensa sou eu quem penso. Muitos desejos que tem eu já tive. Não consigo me enxergar na pele do Outro. O personagem principal para esta montagem tem que ser negro. É e curioso que quando encaramos a possibilidade de substituição – sei lá por quaisquer motivos – do ator Valécio Santos as pessoas dizem sempre: “Não enxergo ela feita por alguém branco.” “Quem faz Shirley tem que ser negra.” Quando dizem isso fico satisfeito, minha negritude não se mostrou panfletaria e aberta na trama, mas ela conseguiu transparecer para o público a ponto de ele se manifestar. Algumas pessoas conseguiam ver minhas referencias negras, outras nem sabiam quem são Steve Biko, Madame Satã, Fanon, mas enxergavam a força de uma NEGRITUDE NATURAL no espetáculo. Geralmente estas pessoas eram negras. Pois, Shirley é negra!
Para além de Transmetropolis, penso a negritude como algo que pode ser evidenciado não somente em cima de palanques, teses de mestrado de 150 páginas, discursos inflados e espetáculos panfletários. Precisamos avançar. Colocar a negritude em um patamar normal! Normalidade que para ser alcançada precisa de muito esforço da nossa parte. Descolonizar nossas cabeças! As ditas minorias, ou maiorias sem representação majoritária em espaços de poder, ainda encontram sua identidade exposta por fatores exóticos. E a destruição do exotismo muitas vezes não se dá a partir de gritos, placas nas mãos, apitos ensurdecedores. Essa negritude eu deixo para quem tem saco de ficar gritando embaixo de sol a pino. Nasci nos anos 80, mas a forma de lutar – na minha opinião – de lá pra cá mudou e muito.
Sou negro. E a minha negritude está na minha essência. Ela não precisa bradar para existir. Pois ela não se oferece como uma carência. Ela é!