Você se considera o que, pardo ou negro? Essa foi a pergunta que tive que responder quando a recenseadora do IBGE veio aqui em casa para o censo 2010. Pensei um pouco: Será que respondo a ela que não tenho cor de azulejo de cozinha, portanto pardo não sou (caralho!) e dou um belo sermão nela ou respondo simplesmente que sou negro e pronto? Preferi a segunda opção. Sem polemicas, sem caras feias e com ela se despedindo cinco minutos depois.
Essa breve visita acabou me rendendo vários pensamentos. O que será que os brasileiros negros por todo este vasto país responderam em sua maioria? Que tinham cor de folha de papel visita?... Por que apesar de todo o debate racial presente nos últimos anos com ênfase até me muitos meios de comunicação, os avanços dos movimentos negros e da abertura que o governo deu para o tema, cor ainda no Brasil é um desafio epistemológico a ser vencido. Muita gente não se considera negro por um milhão de motivos, muitos brancos também não se consideram brancos por outros motivos mil, tem gente que não gosta das palavras branco/negro e declara que aqui no Brasil não existe isso e ainda tem aquela galera que se coloca no meio de tudo, que não se considera nem uma coisa, nem outra... E a pergunta vem: Eu sou neguinho?...
Até por que ser negro não é uma questão simples no Brasil. Depende de muita coisa. De voce que é sujeito de sua história, mas do outro também que tem percepções de voce. Por exemplo. Eu anos atrás não era negro. Tenho minha pele marrom e anos atrás tinha meu cabelo cortado na maquina zero. Portanto, não era negro e sim considerado moreninho. Era moreninho pra lá, moreninho pra cá, uma cosia que só vendo! Me sentia um eterno bronzeado. Quando dizia que era negro para as pessoas, Jesus!, o Apocalipse acontecia. Até hoje lembro o dia que fui a uma médica e a atendente tinha colocado que era pardo na ficha. Ah que nada! “Minha senhora, conserte isso daqui” disse eu apontando para o lugar na ficha onde estava minha cor de forma errada. “Por que? Voce é pardo meu filho!”, “Não. sou negro! Conserte! Quem sabe de mim sou eu!”, “Voce é pardo sim. Negro é quando a pessoa é da cor de carvão, aquele que nem Pelé que é da cor do asfalto!”, “Olhe aqui sua racistinha de merda...”, não eu não disse isso, mas que eu fiquei com vontade fiquei... Falei um pouco mais alto chamando atenção de todos, peguei o formulário e consertei. Ela não gostou, mas o formulário iria ficar borrado mais ainda, além do silêncio da clinica que estava quebrado. Mas já ouvi coisas pior, do tipo: “Ô meu filho, não faça isso com voce não. Você não é preto nada! Voce é moreninho, vermelhinho, mas preto, assim não pode!” (!) “Voce não é preto. É misturado” (!!) “Voce dizendo que é preto, já esta tendo preconceito com voce mesmo” (!!!). Tem umas coisas que o povo diz que eu realmente não consigo alcançar! E neste país a gente é tanta coisa...
E isso não acontece somente com os negros de pele clara não. Com os chamados retintos também acontece às vezes. Parece que para amenizar o “peso” da palavra negro as pessoas tentam disfarçar. “Aquele moreno lindo!”, já que ele é lindo não pode ser negro, entende? Ou “Quero toda sua baianidade nagô dentro de mim”. Racismo brega é foda! Dentre muitos outros apelidos como, morenaço, vermelhinho cor de formiga, cabo verde, cor de jambo, cor do pecado, cor de burro quando foge, Brown, caboclo, Pelé, amarronzado, marrom, marronzinho, marrom bombom, diamante negro, prestigio, roxo, arroxeado, assim de sua cor, assim da cor dela, misturada etc.
Todo mundo sabe que isso não é um fenômeno atual. Começou muitos anos atrás, Brasil colônia e a separação dos negros escravizados pela ideologia da branquitude formulada pelos senhores de engenho e seus vários métodos de afastamento. Aconteceu aqui, nos EUA também – para mais informações leia REDISCUTINDO A MESTIÇAGEM NO BRASIL do professor Kabengele Munanga (clássico obrigatório!). E repercute no Brasil atual disfarçado na velha desculpa que os negros tem preconceito contra si mesmos, que nós não nos assumimos. Mas por que muitos negros no Brasil nãos e assumem? Por que? Como voce vai se assumir se sua cor é ligada a tudo quanto é coisa ruim, se te apelidam por conta das suas características fenotípicas, quando evidenciam que você não tem dinheiro, pois é preto?!
Tenho alunas que dizem que não são negras, alisam o cabelo e dizem seriamente que aquele cabelo é natural. O curioso é que elas nunca olham na minha cara, pois sabem que aquilo é mentira. Afirmam de pé junto que não são negras, mas não tem coragem de dizer que são brancas, pois sabem – lá no fundo! – que igual a estrelas que vêem na TV elas não são. E isso para o sujeito negro é um back muito forte. A mestiçagem que vemos tantos se orgulharem como característica intrínseca do Brasil foi um projeto muito bem arquitetado para nos diluir enquanto sujeitos de uma só historia. Não somos negros, não somos brancos, não somos indígenas, somo brasileiros. Somos uma grande mistura!!!! O Brasil não é um país, é completamente uma vitamina de banana. Uma coisa afro pop nagô miscigenada lusa, quase um cd de Daniela Mercury, um caruru de tanta coisa junta! Eu eim! O velho embate entre o movimento bi-racial e o mega racial. E haja diluição. Haja moreno, moreninho, sarará, mulato claro, mulato médio, mulato escuro, escurinho, nego, neguinho, pardo, tição... Assim não há identidade negra que agüente!
Estamos em 2010, século novo, mas os costumes antigos estão arraigados como nunca! Quanto mais ganhamos visibilidade mais temos que lutar contra o movimento da invisibilidade e do ostracismo. Ou seja, a cada Lazaro Ramos, Tais Araujo, Cidinha da Silva, Ari Lima, Ângelo Flávio, a cada estudante negro que entra na universidade a cada estudante negro que sai formado das universidades do país, existem mil e uma formas de racismos espalhados para fazer essa galera desaparecer. Quanto mais referencias não temos, ou somos rechaçados, mais nos diluímos. Friso novamente: Somos uma grande mistura!!!! Essa mistura que elege o entre lugar como rei, onde não existem brancos (portanto não existe racismo de fato (?)), não existem negros, pois todo mundo se fundiu um dia, em algum lugar desconhecido e hoje todo mundo é vatapá e acarajé.
Realmente acredito que o Brasil seja um país mexido, algo entre a hipocrisia e a violência, entre a mistura que cega e a problematização que desperta.